domingo, 22 de março de 2020

Sentir-se útil

Exatamente quando eu atravessava uma fase de involuntária meditação sobre a inutilidade de minha pessoa, recebi uma carta assinada, mas só darei as iniciais: “Cada vez que me encontro com a beleza de suas contribuições literárias, vejo ainda mais fortalecida minha intensa capacidade de amar, de me dar aos outros, de existir para meu marido.” Assinada H. M.
Não fiquei contente por você, H. M., falar na beleza de minhas contribuições literárias. Primeiro porque a palavra beleza soa como enfeite, e nunca me senti tão despojada da palavra beleza. A expressão “contribuições literárias” também não adorei, porque exatamente ando numa fase em que a palavra literatura me eriça o pelo como o de um gato. Mas, H. M., como você me fez sentir útil ao dizer-me que sua capacidade intensa de amar ainda se fortaleceu mais. Então eu dei isso a você? Muito obrigada. Obrigada também pela adolescente que já fui e que desejava ser útil às pessoas, ao Brasil, à humanidade, e nem se encabulava de usar para si mesma palavras tão imponentes.
Clarice Lispector, in Crônicas para jovens: de escrita e vida

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