Havia
uma cidade, grande, desenvolvida. As pessoas que moravam lá eram
saudáveis, simpáticas e alegres. Não me lembro o nome da cidade,
eu tinha quinze anos quando passei por ela, levado por meu pai. Nessa
época, não me preocupava com o nome, e sim com os lugares
propriamente.
Acontece
que, certo dia, um habitante desta cidade saiu de casa, pela manhã,
dirigindo-se ao emprego. Fez todas as coisas de praxe. Cumprimentou
os vizinhos, o barbeiro da esquina, o vendeiro, os colegas no ponto
do ônibus, agradeceu ao motorista, ao ascensorista, sentou-se em sua
mesa.
Nesse
dia, no fim do expediente, o homem notou que seu pulso esquerdo
parecia mais fino. “Bobagem. Impressão. Acho que estou cansado
demais.” Foi para casa, jantou, viu telenovela, dormiu. Na manhã
seguinte, o pulso tinha se afinado mais. E suas canelas pareciam de
criança. Chamou a mulher. Ela ficou tão impressionada, que o homem
se arrependeu de ter mostrado. Não havia dor, apenas fraqueza.
Partiu
para o emprego. Contente, cumprimentando as pessoas e agradecendo ao
motorista e ao ascensorista. No meio da tarde, porém, não conseguiu
trabalhar. O pulso estava fino e dobrava-se. Maleável, sem
consistência. O homem, envergonhado, puxou a manga da camisa. O mais
que pôde, para que os colegas não vissem.
Mas
viram. O homem tinha o corpo transformado. A cabeça, única coisa
normal, caiu sobre a mesa. O torso não era mais grosso que um lápis,
suas pernas e braços, finos como cordéis. Mas ele estava lúcido,
coerente, o cérebro não tinha sido perturbado. Além do impacto, e
da surpresa ante o estranho, o homem continuava o mesmo. Levado para
casa, chamaram o médico. E o médico chamou outro médico. Porque:
– Não
é o primeiro. É o terceiro, nesta semana.
Os
jornais noticiaram, as notícias trouxeram à luz novos casos. Pela
cidade inteira acontecia aquilo: as pessoas se adelgaçavam,
tornavam-se frágeis. Em pouco tempo, outro fato surgiu, ao lado dos
homens que se transformavam em barbantes. Eram os que se
transformavam em vidro. Tinham que ter muito cuidado, ao andar pela
rua, ao trabalhar, porque podiam se quebrar com qualquer batida. Vez
ou outra, os homens de vidro se desfaziam. Em plena rua, à vista de
todos. Como o vidro blindex que se estilhaça por inteiro.
Aquela
população alegre, saudável, descontraída, começou a viver
apavorada. Sem saber se, a qualquer momento, o vírus (seria vírus?)
podia atacar. Mudando a pessoa em vidro ou barbante. Muitos começaram
a se mudar, indo para cidades distantes. A Secretaria de Saúde
analisou o ar, a água, tudo, em busca das causas. O ar era bom, não
poluído. E as águas vinham de nascentes puras ou de poços
artesianos límpidos. Pensou-se que algumas pessoas podiam estar
colocando elementos venenosos na comida ou em caixas-d’água.
Investigações nada concluíram.
Até
hoje, nada se sabe. A cidade parece estar se habituando com a
possibilidade de eventualmente alguém se transmutar. Não causa mais
surpresa quando um barbante é levado pelo vento ou, em dias de
chuva, é tragado pela enxurrada. Ou quando os vidros se liquefazem,
no momento em que uma pessoa vira a esquina e dá um esbarrão
noutra. A população se acostumou. O homem se adapta às piores
condições, conformando-se com os acontecimentos. Naquela cidade,
tudo é frágil, a vida humana tem a espessura de um fio. Ou é
delgada como um vidro. Mas isto vai se constituindo na normalidade.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas
Nenhum comentário:
Postar um comentário