segunda-feira, 9 de março de 2020

Choque de culturas


O livro Memórias perdidas de Chet Baker vale pelo pouco que revela da intimidade do trompetista e pela ótima tradução do Luiz Orlando Carneiro, um dos nossos melhores jazzófilos. Mas Chet fala mais das suas drogas do que da sua música, e quase não fala de outros músicos. Faz uma pequena exceção para o saxofonista Gerry Mulligan, com quem gravou seus primeiros discos — os do famoso quarteto sem piano — e chegou à fama instantânea. Conta que Gerry, como ele, também tinha problemas com drogas e mulheres. Quando conheci o Gerry Mulligan, em Porto Alegre, essa fase da sua vida já ficara muito, muito para trás. Ao contrário de Chet, Gerry tinha vencido sua luta contra a dependência, era um respeitável senhor de barbas brancas. E a longa sucessão de mulheres na sua vida — que incluíra a atriz Judy Holliday — tinha acabado numa bela italiana chamada Franca, que Gerry conhecera durante a gravação do seu disco com o Piazzolla, na Itália, e aposto que ficou com ele até o fim. Era evidente que a Franca tinha tudo dominado.
Depois da sua apresentação fomos jantar com Mulligan, mulher e trio, a convite do adido cultural americano. O melhor restaurante de Porto Alegre, na época, era o Floresta Negra, cujo dono e maître, “seu” Fridolino, era uma figura controvertida: muitos confundiam com rudeza o que era apenas bom humor alemão, já que as duas coisas nem sempre se distinguem. Estávamos acostumados com seu jeito, e com o fato de que, em noites de muito movimento, a dona Frida e sua equipe, na cozinha, não davam conta, e a comida demorava. Mas a Franca não queria saber do folclore do lugar, queria alimentar o seu homem. E deu-se o choque de culturas.
Seu” Fridolino já expulsara gente do restaurante por menos do que ouviu da italiana, naquela noite. Por um momento a mesa ficou suspensa, à beira de um incidente internacional. O adido cultural e eu, representando nações neutras, ficamos calados. Mulligan nem tomara conhecimento do confronto, aquela era a área de ação da mulher. Manteve a sua pose de patriarca viking. “Seu” Fridolino talvez tenha se dado conta de que enfrentava uma leoa, e a possibilidade de grandes estragos materiais no seu restaurante. Recuou. Ninguém foi expulso. Dali a pouco veio a comida. Estava ótima. Acho que a Franca até elogiou. As forças do Eixo estavam recompostas.
Durante o jantar, não adiantou eu querer perguntar ao Mulligan sobre Zoot Sims e outros que tinham tocado com ele, inclusive o Chet Baker. Ele só queria falar no García Márquez.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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