O
livro Memórias perdidas de Chet Baker vale pelo pouco que
revela da intimidade do trompetista e pela ótima tradução do Luiz
Orlando Carneiro, um dos nossos melhores jazzófilos. Mas Chet fala
mais das suas drogas do que da sua música, e quase não fala de
outros músicos. Faz uma pequena exceção para o saxofonista Gerry
Mulligan, com quem gravou seus primeiros discos — os do famoso
quarteto sem piano — e chegou à fama instantânea. Conta que
Gerry, como ele, também tinha problemas com drogas e mulheres.
Quando conheci o Gerry Mulligan, em Porto Alegre, essa fase da sua
vida já ficara muito, muito para trás. Ao contrário de Chet, Gerry
tinha vencido sua luta contra a dependência, era um respeitável
senhor de barbas brancas. E a longa sucessão de mulheres na sua vida
— que incluíra a atriz Judy Holliday — tinha acabado numa bela
italiana chamada Franca, que Gerry conhecera durante a gravação do
seu disco com o Piazzolla, na Itália, e aposto que ficou com ele até
o fim. Era evidente que a Franca tinha tudo dominado.
Depois
da sua apresentação fomos jantar com Mulligan, mulher e trio, a
convite do adido cultural americano. O melhor restaurante de Porto
Alegre, na época, era o Floresta Negra, cujo dono e maître,
“seu” Fridolino, era uma figura controvertida: muitos confundiam
com rudeza o que era apenas bom humor alemão, já que as duas coisas
nem sempre se distinguem. Estávamos acostumados com seu jeito, e com
o fato de que, em noites de muito movimento, a dona Frida e sua
equipe, na cozinha, não davam conta, e a comida demorava. Mas a
Franca não queria saber do folclore do lugar, queria alimentar o seu
homem. E deu-se o choque de culturas.
“Seu”
Fridolino já expulsara gente do restaurante por menos do que ouviu
da italiana, naquela noite. Por um momento a mesa ficou suspensa, à
beira de um incidente internacional. O adido cultural e eu,
representando nações neutras, ficamos calados. Mulligan nem tomara
conhecimento do confronto, aquela era a área de ação da mulher.
Manteve a sua pose de patriarca viking. “Seu” Fridolino
talvez tenha se dado conta de que enfrentava uma leoa, e a
possibilidade de grandes estragos materiais no seu restaurante.
Recuou. Ninguém foi expulso. Dali a pouco veio a comida. Estava
ótima. Acho que a Franca até elogiou. As forças do Eixo estavam
recompostas.
Durante
o jantar, não adiantou eu querer perguntar ao Mulligan sobre Zoot
Sims e outros que tinham tocado com ele, inclusive o Chet Baker. Ele
só queria falar no García Márquez.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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