Começo
pela confissão de um sentimento conflituoso: é um prazer e uma
honra ter recebido este convite e estar aqui convosco. Mas, ao mesmo
tempo, não sei lidar com este nome pomposo: “oração de
sapiência”. De propósito, escolhi um tema sobre o qual tenho
apenas algumas, mal contidas, ignorâncias. Todos os dias somos
confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos
nós, de modo generoso e patriótico, queremos participar nessa
batalha. Existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre
todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos:
é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da
dificuldade de nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de
partida e como destino de um sonho.
Usarei
da palavra na minha qualidade de escritor tendo escolhido um terreno
que é a nossa interioridade, um território em que somos todos
amadores. Neste domínio ninguém tem licenciatura, nem pode ter a
ousadia de proferir orações de “sapiência”. O único segredo,
a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de
partilhar publicamente as nossas fragilidades. É isso que venho
fazer, partilhar convosco algumas das minhas dúvidas, das minhas
solitárias cogitações.
No
dia em que fiz onze anos de idade, a 5 de julho de 1966, o presidente
Kenneth Kaunda veio aos microfones da Rádio de Lusaka para anunciar
que um dos grandes pilares da felicidade do seu povo tinha sido
construído. Kaunda agradecia ao povo da Zâmbia pelo seu
envolvimento na criação da primeira universidade no país. Uns
meses antes, Kaunda tinha lançado um apelo para que cada zambiano
contribuísse para construir a Universidade. A resposta foi
comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao apelo.
Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado, funcionários
deram dinheiro. Um país de gente analfabeta juntou-se para criar
aquilo que imaginavam ser uma página nova na sua história. A
mensagem dos camponeses na inauguração da Universidade dizia:
Nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os nossos netos
deixarão de passar fome.
Quarenta
anos depois, os netos dos camponeses zambianos continuam sofrendo de
fome. Na realidade, os zambianos vivem hoje pior do que viviam
naquela altura. Na década de 1960, a Zâmbia beneficiava de um
Produto Nacional Bruto comparável aos de Singapura e Malásia. Hoje,
nem de perto nem de longe se pode comparar o nosso vizinho com
aqueles dois países da Ásia.
Algumas
nações africanas podem justificar a permanência da miséria porque
sofreram guerras. Mas a Zâmbia nunca teve guerra. Alguns países
podem argumentar que não possuem recursos. Todavia, a Zâmbia é uma
nação com poderosos recursos minerais. De quem é a culpa deste
frustrar de expectativas? Quem falhou? Foi a Universidade? Foi a
sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? E por que razão Singapura
e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?
Falei
da Zâmbia como um país africano ao acaso. Infelizmente, não
faltariam outros exemplos. O nosso continente está repleto de casos
idênticos, de marchas falhadas, de esperanças frustradas.
Generalizou-se entre nós a descrença na possibilidade de mudarmos
os destinos do nosso continente. Vale a pena perguntarmo-nos: o que
está a acontecer? O que é que é preciso mudar dentro e fora de
África?
Estas
perguntas são sérias. Não podemos iludir as respostas, nem
continuar a atirar poeira para ocultar responsabilidades. Não
podemos aceitar que elas sejam apenas preocupação dos governos.
Felizmente,
estamos vivendo em Moçambique uma situação particular, com
diferenças bem visíveis. Temos que reconhecer e ter orgulho pelo
facto de o nosso percurso ter sido bem distinto. Acabamos
recentemente de presenciar uma dessas diferenças. Desde 1957, apenas
seis entre 153 chefes de Estado africanos renunciaram voluntariamente
ao poder. Joaquim Chissano é o sétimo desses presidentes. Parece um
detalhe mas é indicativo de que o processo moçambicano se guiou por
lógicas bem diversas.
Contudo,
as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos só
serão definitivas quando se converterem em cultura de cada um de
nós. E esse é ainda um caminho de gerações. Entretanto, pesam
sobre Moçambique ameaças que são comuns a todo o continente. A
fome, a miséria, as doenças, tudo isso partilhamos com o resto de
África. Os números são aterradores: 90 milhões de africanos
morrerão com S ida nos próximos vinte anos. Para esse trágico
número, Moçambique terá contribuído com cerca de três milhões
de mortos. A maior parte destes condenados são jovens e representam
exatamente a alavanca com que poderíamos remover o peso da miséria.
Quer dizer, África não está só perdendo o seu próprio presente:
está perdendo o chão onde nasceria um outro amanhã.
Ter
futuro custa muito dinheiro. Mas é muito mais caro só ter passado.
Antes da Independência, para os camponeses zambianos não havia
futuro. Hoje o único tempo que para eles existe é o futuro dos
outros.
Os
desafios são maiores que a esperança? Mas nós não podemos senão
ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar,
sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo é um luxo para
os ricos.
Meus
senhores e minhas senhoras:
A
pergunta crucial é esta: O que é que nos separa desse futuro que
todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros,
mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais
investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é necessário,
tudo isso é imprescindível. Mas para mim há uma outra coisa que é
ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude.
Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição
melhor. Poderemos ter mais técnicos, mais hospitais, mais escolas,
mas não seremos construtores de futuro.
Falo
de uma nova atitude, mas a palavra deve ser pronunciada no plural,
pois ela compõe um vasto conjunto de posturas, crenças, conceitos e
preconceitos. Há muito que venho defendendo que o maior fator de
atraso em Moçambique não se localiza na economia, mas na
incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador.
Um pensamento que não resulte da repetição de lugares-comuns, de
fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros.
Às
vezes pergunto-me: De onde vem a dificuldade em nos pensarmos como
sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos
outros o desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos
foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava
fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso
clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História.
Estamos
todos nós estreando um combate interno para domesticar os nossos
antigos fantasmas. Não podemos entrar na modernidade com o atual
fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos
descalçar. Eu contei sete sapatos sujos que precisamos de deixar na
soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que
escolher e sete é um número mágico.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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