sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Os sete sapatos sujos - Introdução (Oração de Sapiência no ISCTEM, Maputo, 2006.)

Começo pela confissão de um sentimento conflituoso: é um prazer e uma honra ter recebido este convite e estar aqui convosco. Mas, ao mesmo tempo, não sei lidar com este nome pomposo: “oração de sapiência”. De propósito, escolhi um tema sobre o qual tenho apenas algumas, mal contidas, ignorâncias. Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos nós, de modo generoso e patriótico, queremos participar nessa batalha. Existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho.
Usarei da palavra na minha qualidade de escritor tendo escolhido um terreno que é a nossa interioridade, um território em que somos todos amadores. Neste domínio ninguém tem licenciatura, nem pode ter a ousadia de proferir orações de “sapiência”. O único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de partilhar publicamente as nossas fragilidades. É isso que venho fazer, partilhar convosco algumas das minhas dúvidas, das minhas solitárias cogitações.
No dia em que fiz onze anos de idade, a 5 de julho de 1966, o presidente Kenneth Kaunda veio aos microfones da Rádio de Lusaka para anunciar que um dos grandes pilares da felicidade do seu povo tinha sido construído. Kaunda agradecia ao povo da Zâmbia pelo seu envolvimento na criação da primeira universidade no país. Uns meses antes, Kaunda tinha lançado um apelo para que cada zambiano contribuísse para construir a Universidade. A resposta foi comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao apelo. Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado, funcionários deram dinheiro. Um país de gente analfabeta juntou-se para criar aquilo que imaginavam ser uma página nova na sua história. A mensagem dos camponeses na inauguração da Universidade dizia: Nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os nossos netos deixarão de passar fome.
Quarenta anos depois, os netos dos camponeses zambianos continuam sofrendo de fome. Na realidade, os zambianos vivem hoje pior do que viviam naquela altura. Na década de 1960, a Zâmbia beneficiava de um Produto Nacional Bruto comparável aos de Singapura e Malásia. Hoje, nem de perto nem de longe se pode comparar o nosso vizinho com aqueles dois países da Ásia.
Algumas nações africanas podem justificar a permanência da miséria porque sofreram guerras. Mas a Zâmbia nunca teve guerra. Alguns países podem argumentar que não possuem recursos. Todavia, a Zâmbia é uma nação com poderosos recursos minerais. De quem é a culpa deste frustrar de expectativas? Quem falhou? Foi a Universidade? Foi a sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? E por que razão Singapura e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?
Falei da Zâmbia como um país africano ao acaso. Infelizmente, não faltariam outros exemplos. O nosso continente está repleto de casos idênticos, de marchas falhadas, de esperanças frustradas. Generalizou-se entre nós a descrença na possibilidade de mudarmos os destinos do nosso continente. Vale a pena perguntarmo-nos: o que está a acontecer? O que é que é preciso mudar dentro e fora de África?
Estas perguntas são sérias. Não podemos iludir as respostas, nem continuar a atirar poeira para ocultar responsabilidades. Não podemos aceitar que elas sejam apenas preocupação dos governos.
Felizmente, estamos vivendo em Moçambique uma situação particular, com diferenças bem visíveis. Temos que reconhecer e ter orgulho pelo facto de o nosso percurso ter sido bem distinto. Acabamos recentemente de presenciar uma dessas diferenças. Desde 1957, apenas seis entre 153 chefes de Estado africanos renunciaram voluntariamente ao poder. Joaquim Chissano é o sétimo desses presidentes. Parece um detalhe mas é indicativo de que o processo moçambicano se guiou por lógicas bem diversas.
Contudo, as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos só serão definitivas quando se converterem em cultura de cada um de nós. E esse é ainda um caminho de gerações. Entretanto, pesam sobre Moçambique ameaças que são comuns a todo o continente. A fome, a miséria, as doenças, tudo isso partilhamos com o resto de África. Os números são aterradores: 90 milhões de africanos morrerão com S ida nos próximos vinte anos. Para esse trágico número, Moçambique terá contribuído com cerca de três milhões de mortos. A maior parte destes condenados são jovens e representam exatamente a alavanca com que poderíamos remover o peso da miséria. Quer dizer, África não está só perdendo o seu próprio presente: está perdendo o chão onde nasceria um outro amanhã.
Ter futuro custa muito dinheiro. Mas é muito mais caro só ter passado. Antes da Independência, para os camponeses zambianos não havia futuro. Hoje o único tempo que para eles existe é o futuro dos outros.
Os desafios são maiores que a esperança? Mas nós não podemos senão ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo é um luxo para os ricos.

Meus senhores e minhas senhoras:

A pergunta crucial é esta: O que é que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores de futuro.
Falo de uma nova atitude, mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela compõe um vasto conjunto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos. Há muito que venho defendendo que o maior fator de atraso em Moçambique não se localiza na economia, mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Um pensamento que não resulte da repetição de lugares-comuns, de fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros.
Às vezes pergunto-me: De onde vem a dificuldade em nos pensarmos como sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História.
Estamos todos nós estreando um combate interno para domesticar os nossos antigos fantasmas. Não podemos entrar na modernidade com o atual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei sete sapatos sujos que precisamos de deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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