segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A coisa

O silêncio é o modo
como o marido habita a casa.

Vencida a porta, ao final do dia,
o homem assume porte e posses.

A mesa é onde os seus cotovelos
derramam milenares cansaços.

Nesse cotovelório
vai trocando vida por idade.

Partilha a medonhez dos bichos:
medo do silêncio,
mais pavor ainda das palavras.

Para a mulher, porém,
ele não é senão um menino
no aguardo de um agrado.

Em redor do silêncio
ela rodopia, sem voz, sem cheiro, sem rosto.

Em solidão,
o homem come,
merecedor do que lhe é servido.

Depois,
bebe como se fosse bebido,
tragado pelo vazio dos desertos.

Dono do seu despovoado,
então, ele a agride, com ferocidade de bicho.

A mulher se estilhaça no soalho,
sombrio retrato da parede tombado.

No leito,
já servido o marido,
as lágrimas vão colando os seus fragmentos.

E a esposa volta a ser coisa.
Mia Couto

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