Uma
mulher volumosa, de vestido preto todo rasgado, olhou para dentro da
tenda. Seus olhos eram inchados e seu olhar indefinido, e no pescoço,
a pele pendia frouxa. Seus lábios eram abertos e moles, de maneira
que o lábio superior formava como que uma cortina de carne sobre os
dentes, e o lábio inferior, devido ao seu peso, pendia solto e
deixava à mostra as gengivas.
— Bom
dia, dona — disse ela. — Bom dia, e Deus seja louvado.
A
mãe encarou-a.
— Bom
dia — disse.
A
mulher entrou na tenda e debruçou-se sobre a avó.
— Me
disseram que aqui tem uma alma quase indo pro céu — falou. —
Louvado seja Deus!
As
feições da mãe endureceram e seus olhos expressavam desagrado.
— Ela
não tem nada; tá é cansada — disse. — Cansaço da viagem e do
calor. Só isso. Daqui a pouco está boa outra vez.
A
mulher debruçou-se sobre as faces da avó e fungou, parecendo que a
estava a cheirar. Depois virou-se para a mãe e anuiu rapidamente; e
seus lábios e a pele do pescoço tremiam.
— Uma
boa alma para Nosso Senhor Jesus Cristo — disse ela.
A
mãe gritou:
— Isso
não é verdade!
A
mulher tornou a anuir, desta vez mais vagarosamente, e pôs uma mão
gorducha na testa da avó. A mãe fez um gesto, como que querendo
afastar a mão da mulher, mas desistiu a meio caminho.
— É
isso mesmo, irmã — disse a mulher. — Tem seis crentes na nossa
tenda. Vou buscar eles e a gente vai orar. Jeovitas, todos. São
seis, comigo. Vou buscar eles.
A
mãe entesou-se.
— Não...
não precisa — disse. — Ela está muito cansada. Não vai
aguentar isso.
A
mulher disse:
— Não
aguenta uma prece? Não aguenta o doce hálito de Nosso Senhor? Que é
que tá dizendo, irmã?
— Não,
aqui não. Ela está muito cansada — disse a mãe.
A
mulher encarou a mãe com olhos reprovadores:
— A
senhora não é crente, hem, dona?
— Nós
sempre fomos crentes, sim. Mas a avó está muito cansada agora; a
gente viajou a noite toda. Não queremos incomodar ninguém.
— Não
é incômodo, e se fosse, a gente fazia da mesma maneira quando se
trata de mandar uma alma pra Nosso Senhor Jesus Cristo.
A
mãe levantou-se.
— Muito
obrigada — disse com frieza. — Não queremos culto nenhum aqui na
tenda.
A
mulher olhou-a longamente.
— Bom,
mas a gente não vai deixar uma irmã ir embora sem um pouco de
prece. Vamo celebrar o culto na nossa tenda mesmo. E perdoamos a
dureza de seu coração.
A
mãe tornou a sentar-se no chão e virou o rosto para a avó, suas
feições ainda estavam endurecidas.
— Ela
está muito cansada — disse. — Cansada e mais nada. — a avó
mexia a cabeça para um lado e outro e murmurava coisas
ininteligíveis.
A
mulher, rija qual uma estaca, deixou a tenda. A mãe continuou a
olhar o rosto enrugado da anciã.
Rosa
de Sharon recomeçou a abanar o rosto da avó, provocando uma rajada
de ar quente. Ela disse:
— Mãe!
— Que
é?
— Por
que foi que a senhora não queria que eles viessem rezar aqui?
— Não
sei — disse a mãe. — Os jeovitas são boa gente. Dão grandes
gritos e saltos. Não sei, não. Me deu uma coisa aqui dentro. Pensei
que não podia aguentar; ia desabar toda.
De
um local próximo chegavam os sons do culto que se iniciava, a
melodia arrastada de uma exortação. Não se percebia a letra, mas
apenas a melodia, que crescia e diminuía de intensidade, mas subia
de tom em cada ciclo, invariavelmente. Agora ela estacou e uma voz
isolada respondeu ao cântico, e a exortação subia, triunfal e
poderosa. A melodia crescia e parava e desta vez a resposta veio num
rugido. Agora gradualmente as frases de exortação encurtavam-se,
tornavam-se duras qual vozes de comando; e as respostas soavam qual
queixumes. O ritmo tornou-se mais acelerado. Vozes masculinas e
femininas fundiram-se num só tom, mas depois, no meio de uma
resposta, ergueu-se uma voz feminina cada vez mais forte, feroz, como
o grito de um animal ferido; e uma voz feminina mais profunda
seguiu-a, uma voz feito latido, e uma voz masculina subiu, qual o
uivar de um lobo. A exortação parou finalmente, e somente se ouviam
os queixumes animalescos de mistura com batidas de pés no chão. A
mãe tremia. Rosa de Sharon respirava com dificuldade e rapidez, e o
coro uivante prolongou-se até um ponto em que parecia que os pulmões
iam arrebentar.
A
mãe disse:
— Isso
me deixa louca. Não sei o que tenho.
A
voz uivante degenerou agora em gritos histéricos, gritos de hiena, e
as batidas de pés cresceram de intensidade. Vozes esganiçavam-se e
estacavam, então o coro todo decaiu num soluçar estertorante a
meia-voz, e ouviu-se o barulho de pés e de mãos batendo nas coxas;
os estertores descambavam em ganidos, parecidos com os de
cachorrinhos que lutam para alcançar um prato de comida.
Rosa
de Sharon chorava nervosamente, baixinho. A avó sacudiu o cobertor
expondo com isso as pernas semelhantes a galhos nodosos cinzentos.
Gemia com os gemidos que vinham de longe. A mãe tornou a cobrir-lhe
as pernas. A avó suspirou então profundamente, sua respiração
tornou-se firme e fácil, e suas pálpebras caídas não mais se
contraíam. Mergulhara num sono calmo e ressonava, a boca
entreaberta. Os gemidos e uivos ao longe tornavam-se mais e mais
brandos, até se desvanecerem de todo.
Rosa
de Sharon olhou para a mãe, os olhos inundados de lágrimas.
— Fez
bem a ela — disse Rosa de Sharon. — Fez bem. A avó tá dormindo.
A
mãe tinha a cabeça baixa e estava envergonhada.
— Acho
que fui injusta com aquela gente. A avó adormeceu.
— Por
que a senhora não pergunta ao nosso pregador se a senhora cometeu
algum pecado? — perguntou a moça.
— Vou
perguntar, sim... mas ele é um sujeito esquisito. Quem sabe foi por
causa dele que eu disse aos jeovitas para não rezar aqui na nossa
tenda? Esse pregador... ele acha que tudo que os homens fazem é
direito. — A mãe olhou para as mãos e disse: — Rosasharn, a
gente precisa dormir um pouco. Se a gente quiser viajar hoje de
noite, é preciso descansar um pouco. — E estirou-se no chão, ao
lado do colchão.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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