sábado, 21 de dezembro de 2019

Uma alma quase indo pro céu

Uma mulher volumosa, de vestido preto todo rasgado, olhou para dentro da tenda. Seus olhos eram inchados e seu olhar indefinido, e no pescoço, a pele pendia frouxa. Seus lábios eram abertos e moles, de maneira que o lábio superior formava como que uma cortina de carne sobre os dentes, e o lábio inferior, devido ao seu peso, pendia solto e deixava à mostra as gengivas.
Bom dia, dona — disse ela. — Bom dia, e Deus seja louvado.
A mãe encarou-a.
Bom dia — disse.
A mulher entrou na tenda e debruçou-se sobre a avó.
Me disseram que aqui tem uma alma quase indo pro céu — falou. — Louvado seja Deus!
As feições da mãe endureceram e seus olhos expressavam desagrado.
Ela não tem nada; tá é cansada — disse. — Cansaço da viagem e do calor. Só isso. Daqui a pouco está boa outra vez.
A mulher debruçou-se sobre as faces da avó e fungou, parecendo que a estava a cheirar. Depois virou-se para a mãe e anuiu rapidamente; e seus lábios e a pele do pescoço tremiam.
Uma boa alma para Nosso Senhor Jesus Cristo — disse ela.
A mãe gritou:
Isso não é verdade!
A mulher tornou a anuir, desta vez mais vagarosamente, e pôs uma mão gorducha na testa da avó. A mãe fez um gesto, como que querendo afastar a mão da mulher, mas desistiu a meio caminho.
É isso mesmo, irmã — disse a mulher. — Tem seis crentes na nossa tenda. Vou buscar eles e a gente vai orar. Jeovitas, todos. São seis, comigo. Vou buscar eles.
A mãe entesou-se.
Não... não precisa — disse. — Ela está muito cansada. Não vai aguentar isso.
A mulher disse:
Não aguenta uma prece? Não aguenta o doce hálito de Nosso Senhor? Que é que tá dizendo, irmã?
Não, aqui não. Ela está muito cansada — disse a mãe.
A mulher encarou a mãe com olhos reprovadores:
A senhora não é crente, hem, dona?
Nós sempre fomos crentes, sim. Mas a avó está muito cansada agora; a gente viajou a noite toda. Não queremos incomodar ninguém.
Não é incômodo, e se fosse, a gente fazia da mesma maneira quando se trata de mandar uma alma pra Nosso Senhor Jesus Cristo.
A mãe levantou-se.
Muito obrigada — disse com frieza. — Não queremos culto nenhum aqui na tenda.
A mulher olhou-a longamente.
Bom, mas a gente não vai deixar uma irmã ir embora sem um pouco de prece. Vamo celebrar o culto na nossa tenda mesmo. E perdoamos a dureza de seu coração.
A mãe tornou a sentar-se no chão e virou o rosto para a avó, suas feições ainda estavam endurecidas.
Ela está muito cansada — disse. — Cansada e mais nada. — a avó mexia a cabeça para um lado e outro e murmurava coisas ininteligíveis.
A mulher, rija qual uma estaca, deixou a tenda. A mãe continuou a olhar o rosto enrugado da anciã.
Rosa de Sharon recomeçou a abanar o rosto da avó, provocando uma rajada de ar quente. Ela disse:
Mãe!
Que é?
Por que foi que a senhora não queria que eles viessem rezar aqui?
Não sei — disse a mãe. — Os jeovitas são boa gente. Dão grandes gritos e saltos. Não sei, não. Me deu uma coisa aqui dentro. Pensei que não podia aguentar; ia desabar toda.
De um local próximo chegavam os sons do culto que se iniciava, a melodia arrastada de uma exortação. Não se percebia a letra, mas apenas a melodia, que crescia e diminuía de intensidade, mas subia de tom em cada ciclo, invariavelmente. Agora ela estacou e uma voz isolada respondeu ao cântico, e a exortação subia, triunfal e poderosa. A melodia crescia e parava e desta vez a resposta veio num rugido. Agora gradualmente as frases de exortação encurtavam-se, tornavam-se duras qual vozes de comando; e as respostas soavam qual queixumes. O ritmo tornou-se mais acelerado. Vozes masculinas e femininas fundiram-se num só tom, mas depois, no meio de uma resposta, ergueu-se uma voz feminina cada vez mais forte, feroz, como o grito de um animal ferido; e uma voz feminina mais profunda seguiu-a, uma voz feito latido, e uma voz masculina subiu, qual o uivar de um lobo. A exortação parou finalmente, e somente se ouviam os queixumes animalescos de mistura com batidas de pés no chão. A mãe tremia. Rosa de Sharon respirava com dificuldade e rapidez, e o coro uivante prolongou-se até um ponto em que parecia que os pulmões iam arrebentar.
A mãe disse:
Isso me deixa louca. Não sei o que tenho.
A voz uivante degenerou agora em gritos histéricos, gritos de hiena, e as batidas de pés cresceram de intensidade. Vozes esganiçavam-se e estacavam, então o coro todo decaiu num soluçar estertorante a meia-voz, e ouviu-se o barulho de pés e de mãos batendo nas coxas; os estertores descambavam em ganidos, parecidos com os de cachorrinhos que lutam para alcançar um prato de comida.
Rosa de Sharon chorava nervosamente, baixinho. A avó sacudiu o cobertor expondo com isso as pernas semelhantes a galhos nodosos cinzentos. Gemia com os gemidos que vinham de longe. A mãe tornou a cobrir-lhe as pernas. A avó suspirou então profundamente, sua respiração tornou-se firme e fácil, e suas pálpebras caídas não mais se contraíam. Mergulhara num sono calmo e ressonava, a boca entreaberta. Os gemidos e uivos ao longe tornavam-se mais e mais brandos, até se desvanecerem de todo.
Rosa de Sharon olhou para a mãe, os olhos inundados de lágrimas.
Fez bem a ela — disse Rosa de Sharon. — Fez bem. A avó tá dormindo.
A mãe tinha a cabeça baixa e estava envergonhada.
Acho que fui injusta com aquela gente. A avó adormeceu.
Por que a senhora não pergunta ao nosso pregador se a senhora cometeu algum pecado? — perguntou a moça.
Vou perguntar, sim... mas ele é um sujeito esquisito. Quem sabe foi por causa dele que eu disse aos jeovitas para não rezar aqui na nossa tenda? Esse pregador... ele acha que tudo que os homens fazem é direito. — A mãe olhou para as mãos e disse: — Rosasharn, a gente precisa dormir um pouco. Se a gente quiser viajar hoje de noite, é preciso descansar um pouco. — E estirou-se no chão, ao lado do colchão.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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