quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Receitas

Não sou um gourmet mas gosto da minha sauce bernaisezinha. Alguém já disse que gourmet é o cara que se preocupa mais com a pronúncia certa que com o gosto do que come, e não é o meu caso. Acho que um caneton aux herbes de Provence com qualquer outro nome saberia o mesmo, desde que fosse bem-feito, e, que diabo, o maître geralmente é do Espírito Santo, a pronúncia dele é pior que a minha.
Só entendo de comida da boca para dentro. Na cozinha só entro para reivindicar a rapa, e a única parte de uma receita que me interessa é o “leve-se à mesa”. Na última vez que tentei fazer uma omeleta acabei, estranhamente, com purê de batata. Outra vez joguei fora o macarrão e servi a água quente. Felizmente improvisei um nome na hora — eau chaude au hasard — que me salvou do vexame. Não sei cozinhar. Mas sei comer. E assim como certas anfitriãs anunciam com antecedência o nome da autora de seus jantares — “olha, vai ser vatapá feito pela Dona Maria” — já houve casos de anunciarem a minha presença à mesa como uma atração da festa. Veja com que alegria ele limpa o prato. Delicie-se com a sua correta abordagem da lagosta. Vibre com a sua rapidez na mousse au chocolat. Você nem precisa comer, olhar para ele comendo já é um banquete. E sou cada vez mais solicitado.
Posso contar com você no dia 26? É um grupo pequeno, cavaquinhas na manteiga. Você sentaria à cabeceira com um discreto holofote em cima e gemeria um pouco depois de cada garfada.
Dia 26? Preciso consultar a minha agenda. Deixa ver... Não, infelizmente no dia 26 tenho um strogonoff. Fui contratado para repetir o strogonoff quatro vezes e no fim bater na barriga comicamente.
E se eu fizesse o meu jantar um pouco mais tarde? Você poderia comparecer aos dois.
Hmmm. Tenho que pensar no assunto. Qual é a sobremesa? Estou planejando alugar meus serviços para restaurantes com uma clientela indecisa. Em poucos minutos, na minha mesa de canto, eu faria tais gestos e tais ruídos de satisfação com a comida que em pouco tempo transformaria o restaurante numa entusiasmada alegoria à Henrique VIII, o tal que, quando não estava decapitando esposas, estava destrinchando galinhas com os dentes.
Mas se sou um inocente na cozinha, não posso negar que há um certo fascínio na sua linguagem esotérica. Às vezes leio receitas como leio certos poetas, entendendo a metade mas cativo dos seus ritmos e ressonâncias. Todas têm aquela autoridade das poções mágicas, velhas e precisas encantações passadas de feiticeira a feiticeira desde as primeiras cavernas. É a sabedoria milenar do caldeirão. Exatamente tantas cabeças de sapo e tantas bossas de anão, deixe no fogo até borbulhar, ponha de lado e prepare o sangue de virgem Sarracena. Claro que hoje a cozinha tem recursos com os quais as feiticeiras nem sonhavam: batedeiras que só faltam brigar com as crianças, fornos verticais que caminham até você e batem no seu ombro quando o assado está pronto. Mas as receitas preservam seu ar cabalístico. As medidas devem ser estas e só estas, senão tudo desanda e o demônio rouba a alma do suflê. O fogo deve ser alto e não brando. Ou então brando mas não Marlon. E os temperos?
Os nomes dos temperos são tão fascinantes que nos inspiram até a imaginar alguns novos.
Duas pitadas de alfarrábio.
Tinhorão picadinho.
Um feixe de sandice, mas sem exagero.
Ramal, zico, samovar, sementes de oligofrenia e algumas folhas de alvará do campo.
Corrupção à vontade!
Na Guiné, o tubarão branco aux fines herbes é uma especialidade. Pegue-se um tubarão dos grandes. O tubarão deve ser jogado vivo dentro de um grande caldeirão cheio de água salgada, sobre o fogo. Em seguida, acrescentem-se dois porcos selvagens, quatro galinhas, um missionário protestante e um cunhado do chefe que caiu em desgraça. Mexa-se lentamente até ferver a água ou até o tubarão comer a colher, o que vier primeiro. Deixe-se o tubarão de lado. Aproveite-se a água quente para dar banho nas crianças. Tempere-se o tubarão com mirtes, paranhos, ogivas do mato, usucapião e brás de pina. Sirva-se em fatias dentro de folhas de parreira com uma porção de fritas ou arroz. Guarde-se o espinhaço para bater no chef.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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