Não
sou um gourmet mas gosto da minha sauce bernaisezinha. Alguém
já disse que gourmet é o cara que se preocupa mais com a
pronúncia certa que com o gosto do que come, e não é o meu caso.
Acho que um caneton aux herbes de Provence com qualquer outro
nome saberia o mesmo, desde que fosse bem-feito, e, que diabo, o
maître geralmente é do Espírito Santo, a pronúncia dele é
pior que a minha.
Só
entendo de comida da boca para dentro. Na cozinha só entro para
reivindicar a rapa, e a única parte de uma receita que me interessa
é o “leve-se à mesa”. Na última vez que tentei fazer uma
omeleta acabei, estranhamente, com purê de batata. Outra vez joguei
fora o macarrão e servi a água quente. Felizmente improvisei um
nome na hora — eau chaude au hasard — que me salvou do
vexame. Não sei cozinhar. Mas sei comer. E assim como certas
anfitriãs anunciam com antecedência o nome da autora de seus
jantares — “olha, vai ser vatapá feito pela Dona Maria” — já
houve casos de anunciarem a minha presença à mesa como uma atração
da festa. Veja com que alegria ele limpa o prato. Delicie-se com a
sua correta abordagem da lagosta. Vibre com a sua rapidez na
mousse au chocolat. Você nem precisa comer, olhar para ele
comendo já é um banquete. E sou cada vez mais solicitado.
— Posso
contar com você no dia 26? É um grupo pequeno, cavaquinhas na
manteiga. Você sentaria à cabeceira com um discreto holofote em
cima e gemeria um pouco depois de cada garfada.
— Dia
26? Preciso consultar a minha agenda. Deixa ver... Não, infelizmente
no dia 26 tenho um strogonoff. Fui contratado para repetir o
strogonoff quatro vezes e no fim bater na barriga comicamente.
— E
se eu fizesse o meu jantar um pouco mais tarde? Você poderia
comparecer aos dois.
— Hmmm.
Tenho que pensar no assunto. Qual é a sobremesa? Estou planejando
alugar meus serviços para restaurantes com uma clientela indecisa.
Em poucos minutos, na minha mesa de canto, eu faria tais gestos e
tais ruídos de satisfação com a comida que em pouco tempo
transformaria o restaurante numa entusiasmada alegoria à Henrique
VIII, o tal que, quando não estava decapitando esposas, estava
destrinchando galinhas com os dentes.
Mas
se sou um inocente na cozinha, não posso negar que há um certo
fascínio na sua linguagem esotérica. Às vezes leio receitas como
leio certos poetas, entendendo a metade mas cativo dos seus ritmos e
ressonâncias. Todas têm aquela autoridade das poções mágicas,
velhas e precisas encantações passadas de feiticeira a feiticeira
desde as primeiras cavernas. É a sabedoria milenar do caldeirão.
Exatamente tantas cabeças de sapo e tantas bossas de anão, deixe no
fogo até borbulhar, ponha de lado e prepare o sangue de virgem
Sarracena. Claro que hoje a cozinha tem recursos com os quais as
feiticeiras nem sonhavam: batedeiras que só faltam brigar com as
crianças, fornos verticais que caminham até você e batem no seu
ombro quando o assado está pronto. Mas as receitas preservam seu ar
cabalístico. As medidas devem ser estas e só estas, senão tudo
desanda e o demônio rouba a alma do suflê. O fogo deve ser alto e
não brando. Ou então brando mas não Marlon. E os temperos?
Os
nomes dos temperos são tão fascinantes que nos inspiram até a
imaginar alguns novos.
Duas
pitadas de alfarrábio.
Tinhorão
picadinho.
Um
feixe de sandice, mas sem exagero.
Ramal,
zico, samovar, sementes de oligofrenia e algumas folhas de alvará do
campo.
Corrupção
à vontade!
Na
Guiné, o tubarão branco aux fines herbes é uma
especialidade. Pegue-se um tubarão dos grandes. O tubarão deve ser
jogado vivo dentro de um grande caldeirão cheio de água salgada,
sobre o fogo. Em seguida, acrescentem-se dois porcos selvagens,
quatro galinhas, um missionário protestante e um cunhado do chefe
que caiu em desgraça. Mexa-se lentamente até ferver a água ou até
o tubarão comer a colher, o que vier primeiro. Deixe-se o tubarão
de lado. Aproveite-se a água quente para dar banho nas crianças.
Tempere-se o tubarão com mirtes, paranhos, ogivas do mato, usucapião
e brás de pina. Sirva-se em fatias dentro de folhas de parreira com
uma porção de fritas ou arroz. Guarde-se o espinhaço para bater no
chef.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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