sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Os tinguluve

Recordo um episódio que sucedeu comigo. Em 1989, fazia pesquisa na Ilha da Inhaca quando desembarcou nessa ilha uma equipa de técnicos das Nações Unidas. Vinham fazer aquilo que se costuma chamar de “educação ambiental”. Não quero comentar aqui como esse conceito de educação ambiental esconde muitas vezes uma arrogância messiânica. A verdade é que, munidos de boa-fé, os cientistas traziam malas com projetores de slides e filmes. Traziam, enfim, aquilo que na sua linguagem designavam por “kits de educação”, na ingênua esperança de que a tecnologia é a salvação para problemas de entendimento e de comunicação.
Na primeira reunião com a população surgiram curiosos mal-entendidos que revelam a dificuldade de tradução não de palavras mas de pensamento. No pódio estavam os cientistas que falavam em inglês, eu, que traduzia para português, e um pescador que traduzia de português para a língua local, o chidindinhe. Tudo começou logo na apresentação dos visitantes (devo dizer que, por acaso, a maior parte deles eram suecos). “Somos cientistas”, disseram eles. Contudo, a palavra “cientista” não existe na língua local. O termo escolhido pelo tradutor foi inguetlha que quer dizer feiticeiro. Os visitantes surgiam assim aos olhos daquela gente como feiticeiros brancos. O sueco que dirigia a delegação (e ignorando o estatuto com que acabara de ser investido) anunciou a seguir: “Vimos aqui para trabalhar na área do Meio Ambiente”.
Ora, a ideia de Meio Ambiente, naquela cultura, não existe de forma autônoma e não há palavra para designar exatamente esse conceito. O tradutor hesitou e acabou escolhendo a palavra Ntumbuluku, que quer dizer várias coisas mas, sobretudo, refere uma espécie de Big Bang, o momento da criação da humanidade. Como podem imaginar, os ilhéus estavam fascinados: a sua pequena ilha tinha sido escolhida para estudar um assunto da mais nobre e elevada metafísica.
Já no período de diálogo, o mesmo sueco pediu à assembleia que identificasse os problemas ambientais que mais perturbavam a ilha. A multidão entreolhou-se, perplexa: “Problemas ambientais?”
E após recíprocas consultas as pessoas escolheram o maior problema: a invasão das machambas pelos tinguluve, os porcos do mato. Curiosamente, o termo tinguluve nomeia também os espíritos dos falecidos que adoeceram depois de terem deixado de viver. Fossem espíritos, fossem porcos, o consultor estrangeiro não se sentia muito à vontade no assunto dos tinguluve. Ele jamais havia visto tal animal. A assembleia explicou: os tais porcos surgiram misteriosamente na ilha, reproduziram-se na floresta e agora destruíam as machambas.
Destroem as machambas? Então, é fácil: vamos abatê-los!
A multidão reagiu com um silêncio receoso. Abater espíritos? Ninguém mais quis falar ou escutar fosse o que fosse. E a reunião acabou abruptamente, ferida por uma silenciosa falta de confiança.
Já noite, um grupo de velhos me veio bater à porta. Solicitavam que chamasse os estrangeiros para que o assunto dos porcos fosse esclarecido. Os consultores lá vieram, admirados pelo fato de lhes termos interrompido o sono.
É por causa dos porcos selvagens.
O que têm os porcos?
É que não são bem-bem porcos...
Então são o quê? — perguntaram eles, seguros de que uma criatura não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
Quase são porcos. Mas não são os “próprios” porcos.
O esclarecimento ia de mal a pior. Os porcos eram definidos em termos cada vez mais vagos: “bichos convertíveis”, “animais temporários” ou “visitadores enviados por alguém”. O zoólogo, já cansado, pegou num manual de identificação e exibiu uma fotografia de um porco selvagem.
Os ilhéus olharam e disseram: “É este mesmo”. Os cientistas sorriram satisfeitos, mas o sabor de vitória foi breve, pois um dos nhacas acrescentou: “Sim, o animal é esse, mas só de noite”. Os consultores, creio eu, ficaram com a suspeita de que eu não tinha competência para tradutor. Desse modo, não precisavam de se questionar nem de interrogar o seu modo de chegar a um local estranho.
Fosse qual fosse a tradução correta, a verdade é que a relação entre consultores e a comunidade local nunca chegou a ser boa e nenhum sistema de apresentação no moderno PowerPoint conseguiu compensar a marca dos mal-entendidos iniciais.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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