Recordo
um episódio que sucedeu comigo. Em 1989, fazia pesquisa na Ilha da
Inhaca quando desembarcou nessa ilha uma equipa de técnicos das
Nações Unidas. Vinham fazer aquilo que se costuma chamar de
“educação ambiental”. Não quero comentar aqui como esse
conceito de educação ambiental esconde muitas vezes uma
arrogância messiânica. A verdade é que, munidos de boa-fé, os
cientistas traziam malas com projetores de slides e filmes. Traziam,
enfim, aquilo que na sua linguagem designavam por “kits de
educação”, na ingênua esperança de que a tecnologia é a
salvação para problemas de entendimento e de comunicação.
Na
primeira reunião com a população surgiram curiosos mal-entendidos
que revelam a dificuldade de tradução não de palavras mas de
pensamento. No pódio estavam os cientistas que falavam em inglês,
eu, que traduzia para português, e um pescador que traduzia de
português para a língua local, o chidindinhe. Tudo começou logo na
apresentação dos visitantes (devo dizer que, por acaso, a maior
parte deles eram suecos). “Somos cientistas”, disseram eles.
Contudo, a palavra “cientista” não existe na língua local. O
termo escolhido pelo tradutor foi inguetlha que quer dizer
feiticeiro. Os visitantes surgiam assim aos olhos daquela gente como
feiticeiros brancos. O sueco que dirigia a delegação (e ignorando o
estatuto com que acabara de ser investido) anunciou a seguir: “Vimos
aqui para trabalhar na área do Meio Ambiente”.
Ora,
a ideia de Meio Ambiente, naquela cultura, não existe de forma
autônoma e não há palavra para designar exatamente esse conceito.
O tradutor hesitou e acabou escolhendo a palavra Ntumbuluku,
que quer dizer várias coisas mas, sobretudo, refere uma espécie de
Big Bang, o momento da criação da humanidade. Como podem imaginar,
os ilhéus estavam fascinados: a sua pequena ilha tinha sido
escolhida para estudar um assunto da mais nobre e elevada metafísica.
Já
no período de diálogo, o mesmo sueco pediu à assembleia que
identificasse os problemas ambientais que mais perturbavam a ilha. A
multidão entreolhou-se, perplexa: “Problemas ambientais?”
E
após recíprocas consultas as pessoas escolheram o maior problema: a
invasão das machambas pelos tinguluve, os porcos do mato.
Curiosamente, o termo tinguluve nomeia também os espíritos
dos falecidos que adoeceram depois de terem deixado de viver. Fossem
espíritos, fossem porcos, o consultor estrangeiro não se sentia
muito à vontade no assunto dos tinguluve. Ele jamais havia
visto tal animal. A assembleia explicou: os tais porcos surgiram
misteriosamente na ilha, reproduziram-se na floresta e agora
destruíam as machambas.
— Destroem
as machambas? Então, é fácil: vamos abatê-los!
A
multidão reagiu com um silêncio receoso. Abater espíritos? Ninguém
mais quis falar ou escutar fosse o que fosse. E a reunião acabou
abruptamente, ferida por uma silenciosa falta de confiança.
Já
noite, um grupo de velhos me veio bater à porta. Solicitavam que
chamasse os estrangeiros para que o assunto dos porcos fosse
esclarecido. Os consultores lá vieram, admirados pelo fato de lhes
termos interrompido o sono.
— É
por causa dos porcos selvagens.
— O
que têm os porcos?
— É
que não são bem-bem porcos...
— Então
são o quê? — perguntaram eles, seguros de que uma criatura
não pode ser e não ser ao mesmo tempo.
— Quase
são porcos. Mas não são os “próprios” porcos.
O
esclarecimento ia de mal a pior. Os porcos eram definidos em termos
cada vez mais vagos: “bichos convertíveis”, “animais
temporários” ou “visitadores enviados por alguém”. O zoólogo,
já cansado, pegou num manual de identificação e exibiu uma
fotografia de um porco selvagem.
Os
ilhéus olharam e disseram: “É este mesmo”. Os cientistas
sorriram satisfeitos, mas o sabor de vitória foi breve, pois um dos
nhacas acrescentou: “Sim, o animal é esse, mas só de noite”. Os
consultores, creio eu, ficaram com a suspeita de que eu não tinha
competência para tradutor. Desse modo, não precisavam de se
questionar nem de interrogar o seu modo de chegar a um local
estranho.
Fosse
qual fosse a tradução correta, a verdade é que a relação entre
consultores e a comunidade local nunca chegou a ser boa e nenhum
sistema de apresentação no moderno PowerPoint conseguiu
compensar a marca dos mal-entendidos iniciais.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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