Em
certa manhã chegou ao cenário de minha história um velho
descarnado, visivelmente no fim de sua existência. Era Paredes e
vinha morrer no seu torrão natal. Quedou-se como agregado numa
estância cujo capataz era um de seus irmãos. Já ninguém falava no
duelo, prescrito também nas lembranças, e ele, ao que parece,
esmerou-se em não fazer qualquer alusão. Sem demonstrar interesse
especial, ouviu de seu irmão que a duas léguas dali morava Yuste.
Pouco ou nada lhe significou, dir-se-ia, ouvir falar no nome daquele
que, trinta e tantos anos antes, salvara-o sabe-se lá de quantas
punhaladas. Em verdade, nunca se pôde saber em que medida memorizava
os acontecimentos do dia em que havia matado um homem ou a tanto fora
obrigado. Passava a maior parte do tempo sentado debaixo de um
cinamomo, tomando incontáveis mates e fitando o chão, as
alpargatas, a fumaça do cigarro que atirava ao chão, o ir e vir das
formigas de sempre... É inegável que esperou a morte com um leve e
vigilante beneplácito. Ao cabo de poucos meses, numa tarde de março,
não despertou da sesta. O irmão decidiu que o velório seria feito
na estância e mandou avisar o juiz e os vizinhos.
Outonamente
serena e de lua recém-entrada em minguante foi a noite que se
substituiu àquela tarde. No fundo de um galpão ou cocheira, o corpo
de Paredes, homem pequeno e encurtado mais ainda pela morte, sumido
num caixão grande demais, entre quatro velas e com um punhado de
flores amarelas sobre o peito. Mulheres sentadas em cadeiras e bancos
pelas laterais do ataúde, rezando ou simplesmente estando. Homens
aqui e ali, falando de mil coisas, mas sempre com vozes opacas,
refreadas. O irmão de Paredes desempenhando com algum exagero
perdoável o papel de parente mais próximo. Dentro do galpão dois
lampiões de querosene, outros dois no lado de fora, pendurados na
parreira. Um fogo pequeno debaixo dos cinamomos e cavalos presos no
palanque e nos moirões do brete das ovelhas. Várias charretes com
os cavalos maneados c uma delas com os varais erguidos, como em prece
para o céu sem nuvens. Diversas cuias circulando. De quando em
quando a ronda do garrafão de canha com pitanga. Com seus quatro
anjinhos negros de madeira, a carruagem da funerária (sem os
cavalos, que pastavam no potreiro) esperava atrás das casas.
Já
tarde, passava da meia-noite, chegou Juan Pablo Yuste ao velório do
matador de seu pai. Era bem visível na noite clara a silhueta do
homem alto e forte que sujeitava seu cavalo e desmontava. Foi logo
reconhecido. A notícia de sua presença se espalhou rapidamente e
muitos homens e mulheres perceberam que, sem o saber, tinham estado à
sua espera.
O
recém-chegado prendeu as rédeas num varejão da cancela e
encaminhou-se para as luzes do parreiral. Caminhava sem pressa, com
passos firmes, talvez firmes demais. Alguns homens que estavam perto
do bocal do poço olharam para ele em silêncio, numa expectativa
misteriosa e crescente. Acreditaram ter notado algo estranho, algo de
autômato em seus movimentos. A grande lua mordida parecia iluminá-lo
mais do que devia e cada vez melhor.
Yuste
não olhou para ninguém e alcançou a porta do galpão ou cocheira
onde estava o corpo de Paredes. Vacilou um instante, mas viu-se logo
que entraria. Seu rosto, agora muito próximo de um dos lampiões,
era duro, tenso, fechado. Seus olhos pareciam olhar sem ver. Respirou
fundo e entrou. Há sentidos que pressentem: dois ou três homens se
apressaram atrás dele.
Um
minuto depois ouviu-se ruído de tumulto no fundo do galpão: gritos
de mulheres, destemperadas vozes masculinas, barulho de cadeiras
caídas. Os homens que estavam no lado de fora acudiram à porta.
Vieram do galpão mais gritos e mais vozes e mais ruídos. E também
Yuste, abrindo caminho: trazia nos braços, como a uma criança que
dormia, o pequeno cadáver de Paredes.
Alguns
homens tentaram detê-lo, algumas mulheres soluçavam. Yuste,
vociferando que o deixassem passar, dobrou o cadáver sobre o ombro.
Em sua mão direita relumbrou um punhal e todos se afastaram. Andou
até a cancela, e a grande lua parecia iluminá-lo ainda mais do que
antes. Dois ou três homens desembainharam suas facas e quiseram
segui-lo, outros homens os contiveram. Todos se aquietaram,
sobrevindo um silêncio unânime. Yuste montou em seu cavalo, com o
corpo dobrado sobre a cabeça do lombilho, e partiu a galope. Como
despertando, como reaparecendo, os cães da estância se agruparam
atrás do galpão e, desalentados e medrosos, começaram a uivar.
Mario
Arregui, in Cavalos do amanhecer
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