domingo, 15 de dezembro de 2019

A vassoura da bruxa (trecho)

Em certa manhã chegou ao cenário de minha história um velho descarnado, visivelmente no fim de sua existência. Era Paredes e vinha morrer no seu torrão natal. Quedou-se como agregado numa estância cujo capataz era um de seus irmãos. Já ninguém falava no duelo, prescrito também nas lembranças, e ele, ao que parece, esmerou-se em não fazer qualquer alusão. Sem demonstrar interesse especial, ouviu de seu irmão que a duas léguas dali morava Yuste. Pouco ou nada lhe significou, dir-se-ia, ouvir falar no nome daquele que, trinta e tantos anos antes, salvara-o sabe-se lá de quantas punhaladas. Em verdade, nunca se pôde saber em que medida memorizava os acontecimentos do dia em que havia matado um homem ou a tanto fora obrigado. Passava a maior parte do tempo sentado debaixo de um cinamomo, tomando incontáveis mates e fitando o chão, as alpargatas, a fumaça do cigarro que atirava ao chão, o ir e vir das formigas de sempre... É inegável que esperou a morte com um leve e vigilante beneplácito. Ao cabo de poucos meses, numa tarde de março, não despertou da sesta. O irmão decidiu que o velório seria feito na estância e mandou avisar o juiz e os vizinhos.
Outonamente serena e de lua recém-entrada em minguante foi a noite que se substituiu àquela tarde. No fundo de um galpão ou cocheira, o corpo de Paredes, homem pequeno e encurtado mais ainda pela morte, sumido num caixão grande demais, entre quatro velas e com um punhado de flores amarelas sobre o peito. Mulheres sentadas em cadeiras e bancos pelas laterais do ataúde, rezando ou simplesmente estando. Homens aqui e ali, falando de mil coisas, mas sempre com vozes opacas, refreadas. O irmão de Paredes desempenhando com algum exagero perdoável o papel de parente mais próximo. Dentro do galpão dois lampiões de querosene, outros dois no lado de fora, pendurados na parreira. Um fogo pequeno debaixo dos cinamomos e cavalos presos no palanque e nos moirões do brete das ovelhas. Várias charretes com os cavalos maneados c uma delas com os varais erguidos, como em prece para o céu sem nuvens. Diversas cuias circulando. De quando em quando a ronda do garrafão de canha com pitanga. Com seus quatro anjinhos negros de madeira, a carruagem da funerária (sem os cavalos, que pastavam no potreiro) esperava atrás das casas.
Já tarde, passava da meia-noite, chegou Juan Pablo Yuste ao velório do matador de seu pai. Era bem visível na noite clara a silhueta do homem alto e forte que sujeitava seu cavalo e desmontava. Foi logo reconhecido. A notícia de sua presença se espalhou rapidamente e muitos homens e mulheres perceberam que, sem o saber, tinham estado à sua espera.
O recém-chegado prendeu as rédeas num varejão da cancela e encaminhou-se para as luzes do parreiral. Caminhava sem pressa, com passos firmes, talvez firmes demais. Alguns homens que estavam perto do bocal do poço olharam para ele em silêncio, numa expectativa misteriosa e crescente. Acreditaram ter notado algo estranho, algo de autômato em seus movimentos. A grande lua mordida parecia iluminá-lo mais do que devia e cada vez melhor.
Yuste não olhou para ninguém e alcançou a porta do galpão ou cocheira onde estava o corpo de Paredes. Vacilou um instante, mas viu-se logo que entraria. Seu rosto, agora muito próximo de um dos lampiões, era duro, tenso, fechado. Seus olhos pareciam olhar sem ver. Respirou fundo e entrou. Há sentidos que pressentem: dois ou três homens se apressaram atrás dele.
Um minuto depois ouviu-se ruído de tumulto no fundo do galpão: gritos de mulheres, destemperadas vozes masculinas, barulho de cadeiras caídas. Os homens que estavam no lado de fora acudiram à porta. Vieram do galpão mais gritos e mais vozes e mais ruídos. E também Yuste, abrindo caminho: trazia nos braços, como a uma criança que dormia, o pequeno cadáver de Paredes.
Alguns homens tentaram detê-lo, algumas mulheres soluçavam. Yuste, vociferando que o deixassem passar, dobrou o cadáver sobre o ombro. Em sua mão direita relumbrou um punhal e todos se afastaram. Andou até a cancela, e a grande lua parecia iluminá-lo ainda mais do que antes. Dois ou três homens desembainharam suas facas e quiseram segui-lo, outros homens os contiveram. Todos se aquietaram, sobrevindo um silêncio unânime. Yuste montou em seu cavalo, com o corpo dobrado sobre a cabeça do lombilho, e partiu a galope. Como despertando, como reaparecendo, os cães da estância se agruparam atrás do galpão e, desalentados e medrosos, começaram a uivar.
Mario Arregui, in Cavalos do amanhecer

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