Às
vezes minha mãe perdia as arestas e a dureza, animava-se, quase se
embelezava. Catorze ou quinze anos mais moço que ela, habituei-me,
nessas tréguas curtas e valiosas, a julgá-la criança, uma
companheira de gênio variável, que era necessário tratar
cautelosamente. Sucedia desprecatar-me e enfadá-la. Os catorze ou
quinze anos surgiam entre nós, alargavam-se de chofre — e
causavam-me desgosto.
Um
dia, em maré de conversa, na prensa de farinha do copiar, minha mãe
tentava compor frases no vocabulário obscuro dos folhetos. Eu me
deixava embalar pela música. E de quando em quando aventurava
perguntas que ficavam sem respostas e perturbavam a narradora.
Súbito
ouvi uma palavra doméstica e veio-me a ideia de procurar a
significação exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mãe
estranhou a curiosidade: impossível um menino de seis anos, em idade
de entrar na escola, ignorar aquilo. Realmente eu possuía noções.
O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar. Mas não
era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas
mal-educadas mandavam outras, em discussões. E num lugar existem
casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi
uma descrição. Minha mãe condenou a exigência e quis permanecer
nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei
para a ciência dela. Por que não contava o negócio direitinho?
Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das
outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os
moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres,
viviam depois de mortos em fogueiras maiores que as de S. João e em
tachas de breu derretido. Falou um pouco a respeito dessas criaturas.
Fogueiras
de S. João eu conhecia. Tinha-se feito uma diante da casa. Eu andara
à tardinha em redor do monte de lenha que o moleque José arrumava.
Admirando
os aprestos, espantava-me de haver nascido ali de supetão um
mamoeiro carregado de frutos verdes. À noite deitara-se na pilha uma
garrafa de querosene, viera um tição. E eu ficara na calçada até
dez horas, olhando as labaredas, que meu pai alimentava com aduelas e
sarrafos. A gente da vila mexia-se, ria e cantava, iluminada por
outros fogos. No dia seguinte as folhas do mamoeiro se torravam,
pulverizavam. E na rua, desentulhada, apareciam grandes manchas
negras.
Também
conhecia o breu derretido. No armazém, barricas finas continham
substância escura que, pisada, tomava a cor das moedas de vintém
livres do azinhavre raspadas no tijolo, molhadas e enxutas. Eu havia
esfarelado um pedaço dessa maravilha, com um peso de meio quilo,
junto à balança romana da loja. Tinha posto a massa dourada num
cartucho de jornal, riscado um fósforo em cima e esperado o
fenômeno. Uma lágrima correra no papel, alcançara-me o dedo
anular, descera da unha à primeira falange.
Largando
a experiência, eu me desesperara, abafando os gritos, fora meter a
mão num pote de água. Tinha sofrido em silêncio, receando que
percebessem a traquinada e a queimadura.
Quando
minha mãe falou em breu derretido, examinei a cicatriz do dedo e
balancei a cabeça, em dúvida. Se o pequeno torrão, esmagado com o
peso de meio quilo, originara aquele desastre, como admitir que
pessoas resistissem muitos ano3 a barricas cheias derramadas em
tachas fundas, sobre fogueiras de S. João?
— A
senhora esteve lá?
Desprezou
a interrogação inconveniente e prosseguiu com energia.
— Eu
queria saber se a senhora tinha estado lá. Tão tinha estado, mas as
coisas se passavam daquela forma e não podiam passar-se de forma
diversa. Os padres ensinavam que era assim.
— Os
padres estiveram lá?
A
pergunta não significava desconfiança na autoridade. Eu nem pensava
nisso. Desejava que me explicassem a região de hábitos curiosos.
Não me satisfaziam as fogueiras, as tachas de breu, vítimas e
demônios. Necessitava pormenores.
Minha
mãe estragada a narração com uma incongruência. Assegurara que os
diabos se davam bem na chama e na brasa. Desconhecia, porém, a
resistência das almas supliciadas. Dissera que elas suportariam
padecimentos eternos. Logo insinuara que, depois de estágio mais ou
menos longo, se transformariam em diabos. Indispensável esclarecer
esse ponto. Não busquei razões, bastavam-me afirmações. Achava-me
disposto a crer, aceitaria os casos extraordinários sem esforço,
contanto que não houvesse neles muitas incompatibilidades. Reclamava
unia testemunha, alguém que tivesse visto diabos chifrudos, almas
nadando em breu. Ainda não me havia capacitado de que se descrevem
perfeitamente coisas nunca vistas.
— Os
padres estiveram lá? tornei a perguntar.
Minha
mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinham estado,
claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam
tudo no seminário, nos livros. Senti forte decepção: as chamas
eternas e as caldeiras medonhas esfriaram. Começava a julgar a
história razoável, adivinhava por que motivo Padre João Inácio,
poderoso e meio cego, furava os braços da gente, na vacina. Com
certeza Padre João Inácio havia perdido um olho no inferno e de lá
trouxera aquele mau costume. A resposta de minha mãe desiludiu-me,
embaralhou-me as ideias. E pratiquei um ato de rebeldia:
— Não
há nada disso.
Minha
mãe esteve algum tempo analisando-me, de boca aberta, assombrada. E
eu, numa indignação por se haverem dissipado as tachas de breu, os
demônios, o prestígio de Padre João Inácio, repeti:
— Não
há não. É conversa.
Minha
mãe curvou-se, descalçou-se e aplicou-me várias chineladas. Não
me convenci. Conservei-me dócil, tentando acomodar-me às
esquisitices alheias.
Mas
algumas vezes fui sincero, idiotamente. E vieram-me chineladas e
outros castigos oportunos.
Graciliano
Ramos, in Infância
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