sábado, 23 de novembro de 2019

O cavalo esperto


Exibição de Hans Esperto em 1904

Em 2010, cientistas realizaram um experimento especialmente tocante com ratos. Eles trancaram um rato numa gaiola minúscula, colocaram-na dentro de um compartimento maior e deixaram que outro rato vagasse livremente por esse compartimento. O rato engaiolado demonstrou sinais de estresse, o que fez com que o rato solto também demonstrasse sinais de ansiedade e estresse. Na maioria dos casos, o rato solto tentava ajudar seu companheiro aprisionado e, depois de várias tentativas, conseguia abrir a gaiola e libertar o prisioneiro. Os pesquisadores repetiram o experimento, dessa vez pondo um chocolate no compartimento. O rato livre tinha de escolher entre libertar o prisioneiro e ficar com o chocolate só para ele. Muitos ratos preferiram primeiro soltar o companheiro e dividir o chocolate (embora uns poucos tenham mostrado mais egoísmo, provando com isso que alguns ratos são mais maldosos que outros).
Os céticos descartaram essas conclusões, alegando que o rato livre liberta o prisioneiro não por ser movido por empatia, mas simplesmente para parar com os incomodativos sinais de estresse apresentados pelo companheiro. Os ratos seriam motivados pelas sensações desagradáveis que sentem e não buscam nada além de exterminá-las. Pode ser. Mas poderíamos dizer o mesmo sobre nós, humanos. Quando dou dinheiro a um mendigo, estou reagindo às sensações desagradáveis que sua visão provoca em mim? Realmente me importo com ele, ou só quero me sentir melhor?
Na essência, nós humanos não somos diferentes de ratos, golfinhos ou chimpanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles também têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É claro que todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos têm suas aptidões especiais. Não deveríamos humanizar os animais desnecessariamente, imaginando que são apenas uma versão mais peluda de nós mesmos. Isso não só configura uma ciência ruim, como igualmente nos impede de compreender e valorizar outros animais em seus próprios termos.
No começo da década de 1900, um cavalo chamado Hans Esperto tornou-se uma celebridade na Alemanha. Percorrendo cidades e aldeias alemãs, o animal demonstrou um domínio notável da língua alemã e uma habilidade ainda mais notável em matemática. Quando lhe perguntavam “Hans, quanto é quatro vezes três?”, ele batia com o casco doze vezes. Quando lhe mostravam uma mensagem escrita com a pergunta “Quando é vinte menos onze?”, Hans batia nove vezes, com uma precisão prussiana condecorável.
Em 1904, a junta alemã de educação designou uma comissão científica chefiada por um psicólogo para examinar a questão. Os treze membros da comissão — que incluía um gerente de circo e um veterinário — estavam convencidos de que devia se tratar de uma fraude, mas, apesar de seus esforços, não conseguiram revelar nenhuma fraude ou subterfúgio. Mesmo quando separaram Hans de seu dono e as perguntas foram feitas por pessoas totalmente estranhas, a maior parte das respostas estava correta.
No ano de 1907, o psicólogo Oskar Pfungst deu início a uma nova investigação que finalmente revelou a verdade. Descobriu-se que Hans obtinha as respostas certas acompanhando atentamente a linguagem corporal e a expressão facial de seus interlocutores. Quando lhe perguntavam quanto era quatro vezes três, ele sabia, de experiências anteriores, que os humanos esperavam que ele batesse com o casco um número específico de vezes. Começava a bater, enquanto monitorava atentamente os humanos. À medida que Hans se aproximava do número correto de batidas, os humanos mostravam-se mais tensos, e, quando ele dava a batida que correspondia ao número correto, a tensão atingia o clímax. Hans sabia como reconhecer isso pela atitude corporal e pela fisionomia dos humanos. Ele então parava de bater e via como a tensão dava lugar à admiração ou ao riso. Hans sabia que tinha acertado.
O caso de Hans com frequência é citado como exemplo de como os humanos humanizam erroneamente os animais, atribuindo-lhes aptidões ainda mais espantosas do que as que de fato possuem. A verdade, no entanto, é que a lição a ser tirada é exatamente o oposto. Essa história demonstra que, ao humanizar animais, usualmente subestimamos a cognição animal e ignoramos as aptidões únicas de outras criaturas. No que concerne à matemática, Hans dificilmente seria um gênio. Qualquer garoto de onze anos faria muito melhor. No entanto, em sua capacidade de deduzir emoções e intenções da linguagem corporal, Hans era verdadeiramente um gênio. Se um chinês me perguntasse em mandarim quanto é quatro vezes três, não haveria a mínima possibilidade de eu acertar batendo com o pé doze vezes somente como resultado de minha observação de expressões faciais e linguagens corporais. Hans era dotado dessa capacidade porque cavalos normalmente se comunicam entre si por meio de linguagem corporal. Contudo, o que é notável no que diz respeito a esse animal, é que ele pôde usar esse método para decifrar as emoções e intenções não só de seus camaradas cavalos, mas também dos não familiares humanos.
Se animais são tão espertos, por que os cavalos não atrelam humanos a carroças, ratos não fazem experimentos conosco e golfinhos não nos fazem saltar por dentro de argolas? O Homo sapiens certamente tem algumas aptidões únicas que lhe permitem dominar todos os outros animais. Descartadas as exageradas noções de que o Homo sapiens existe num plano totalmente diferente do dos outros animais, e de que humanos possuem uma essência única, como alma ou consciência, podemos finalmente descer ao nível da realidade e examinar as aptidões físicas ou mentais específicas que conferem à nossa espécie sua posição vantajosa.
A maioria dos estudos menciona a produção de ferramentas e a inteligência como fatores particularmente importantes para a ascensão do gênero humano. A despeito de outros animais também produzirem ferramentas, sem dúvida os humanos os suplantam nesse aspecto. As coisas são menos claras no que diz respeito à inteligência. Dedica-se uma indústria inteira a definir e medir a inteligência, mas estamos longe de chegar a um consenso. Felizmente não precisamos entrar nesse campo minado porque, não importa como definamos inteligência, está bem claro que nem a inteligência nem a fabricação de ferramentas podem explicar sozinhas a conquista do mundo pelos Sapiens. Segundo as definições de inteligência em geral, há 1 milhão de anos os humanos já eram os animais mais inteligentes então existentes, bem como os campeões na fabricação de ferramentas, no entanto continuavam a ser criaturas insignificantes com reduzido impacto no ecossistema circundante. Obviamente lhes faltava uma característica-chave, que não era nem a inteligência nem a capacidade de fabricar ferramentas.
Talvez o gênero humano tenha posteriormente dominado o planeta graças não a algum ingrediente fugidio fundamental, mas tão somente à evolução de uma inteligência ainda maior e até mesmo a uma capacidade mais efetiva de fabricar ferramentas. Não parece que tenha sido assim, porque, quando examinamos o registro histórico, não há uma correlação direta da inteligência e da capacidade de fabricar ferramentas com o poder de nossa espécie como um todo. Vinte séculos atrás, o Sapiens mediano provavelmente tinha mais inteligência e maior capacidade de fabricar ferramentas do que o Sapiens mediano atual. Escolas e empregadores modernos podem testar nossas aptidões de tempos em tempos, mas não importa quão mal nos saiamos, o Estado-providência garante nossas necessidades básicas. Na Idade da Pedra, a seleção natural testava o homem a todo momento, em todos os dias de sua vida, e, se ele cometesse a menor das falhas, estaria morto e enterrado em pouco tempo. Mas, apesar da maior capacidade de fabricação de ferramentas que tinham nossos ancestrais da Idade da Pedra, de suas mentes mais afiadas e de seus sentidos muito mais aguçados, há 20 mil anos o gênero humano era muito mais fraco do que é na atualidade.
No decorrer desses 20 mil anos, o gênero humano passou da caça a mamutes usando lanças com pontas de pedra à exploração do sistema solar com espaçonaves em virtude não da evolução de mãos mais ágeis ou de cérebros maiores (na verdade, atualmente nossos cérebros parecem ser menores). Em vez disso, o fator crucial de nossa conquista do mundo foi nossa capacidade de conectar muitos humanos uns com os outros. Hoje dominamos completamente o planeta não porque um indivíduo humano seja muito mais esperto e mais ágil do que um indivíduo chimpanzé ou lobo, e sim porque o Homo sapiens é a única espécie na Terra capaz de uma cooperação flexível e em grande escala. Inteligência e fabricação de ferramentas foram, obviamente, muito importantes. Porém, se os humanos não tivessem aprendido a cooperar com flexibilidade e em grande escala, nossos cérebros astutos e nossas mãos ágeis ainda estariam quebrando lascas de pedra, e não átomos de urânio.
Se cooperação é a chave, como então as formigas e as abelhas não chegaram antes de nós à bomba nuclear, mesmo tendo aprendido a cooperar em escala maciça milhões de anos antes dos humanos? É porque sua cooperação carece de flexibilidade. Abelhas cooperam de modos muito sofisticados, mas não são capazes de reinventar seu sistema social da noite para o dia. Se uma colmeia depara com uma nova ameaça ou uma nova oportunidade, as abelhas não são capazes, por exemplo, de guilhotinar a rainha e estabelecer uma república.
Mamíferos sociais como elefantes e chimpanzés cooperam de maneira muito mais flexível do que abelhas, porém só o fazem com um número pequeno de amigos e membros da família. Sua cooperação se baseia em conhecimento pessoal. Se eu sou um chimpanzé e você um chimpanzé e eu quero cooperar com você, preciso conhecê-lo pessoalmente: que tipo de chimpanzé você é? Você é um chimpanzé legal? É um chimpanzé malvado? Como posso cooperar com você se não o conheço? Por tudo o que sabemos, somente os Sapiens são capazes de cooperar de modos muito flexíveis com um grande número de estranhos. Essa capacidade concreta — e não uma alma eterna ou algum tipo único de consciência — explica nosso domínio sobre o planeta Terra.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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