Exibição de Hans Esperto em 1904
Em
2010, cientistas realizaram um experimento especialmente tocante com
ratos. Eles trancaram um rato numa gaiola minúscula, colocaram-na
dentro de um compartimento maior e deixaram que outro rato vagasse
livremente por esse compartimento. O rato engaiolado demonstrou
sinais de estresse, o que fez com que o rato solto também
demonstrasse sinais de ansiedade e estresse. Na maioria dos casos, o
rato solto tentava ajudar seu companheiro aprisionado e, depois de
várias tentativas, conseguia abrir a gaiola e libertar o
prisioneiro. Os pesquisadores repetiram o experimento, dessa vez
pondo um chocolate no compartimento. O rato livre tinha de escolher
entre libertar o prisioneiro e ficar com o chocolate só para ele.
Muitos ratos preferiram primeiro soltar o companheiro e dividir o
chocolate (embora uns poucos tenham mostrado mais egoísmo, provando
com isso que alguns ratos são mais maldosos que outros).
Os
céticos descartaram essas conclusões, alegando que o rato livre
liberta o prisioneiro não por ser movido por empatia, mas
simplesmente para parar com os incomodativos sinais de estresse
apresentados pelo companheiro. Os ratos seriam motivados pelas
sensações desagradáveis que sentem e não buscam nada além de
exterminá-las. Pode ser. Mas poderíamos dizer o mesmo sobre nós,
humanos. Quando dou dinheiro a um mendigo, estou reagindo às
sensações desagradáveis que sua visão provoca em mim? Realmente
me importo com ele, ou só quero me sentir melhor?
Na
essência, nós humanos não somos diferentes de ratos, golfinhos ou
chimpanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles também
têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É
claro que todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos
têm suas aptidões especiais. Não deveríamos humanizar os animais
desnecessariamente, imaginando que são apenas uma versão mais
peluda de nós mesmos. Isso não só configura uma ciência ruim,
como igualmente nos impede de compreender e valorizar outros animais
em seus próprios termos.
No
começo da década de 1900, um cavalo chamado Hans Esperto tornou-se
uma celebridade na Alemanha. Percorrendo cidades e aldeias alemãs, o
animal demonstrou um domínio notável da língua alemã e uma
habilidade ainda mais notável em matemática. Quando lhe perguntavam
“Hans, quanto é quatro vezes três?”, ele batia com o casco doze
vezes. Quando lhe mostravam uma mensagem escrita com a pergunta
“Quando é vinte menos onze?”, Hans batia nove vezes, com uma
precisão prussiana condecorável.
Em
1904, a junta alemã de educação designou uma comissão científica
chefiada por um psicólogo para examinar a questão. Os treze membros
da comissão — que incluía um gerente de circo e um veterinário —
estavam convencidos de que devia se tratar de uma fraude, mas, apesar
de seus esforços, não conseguiram revelar nenhuma fraude ou
subterfúgio. Mesmo quando separaram Hans de seu dono e as perguntas
foram feitas por pessoas totalmente estranhas, a maior parte das
respostas estava correta.
No
ano de 1907, o psicólogo Oskar Pfungst deu início a uma nova
investigação que finalmente revelou a verdade. Descobriu-se que
Hans obtinha as respostas certas acompanhando atentamente a linguagem
corporal e a expressão facial de seus interlocutores. Quando lhe
perguntavam quanto era quatro vezes três, ele sabia, de experiências
anteriores, que os humanos esperavam que ele batesse com o casco um
número específico de vezes. Começava a bater, enquanto monitorava
atentamente os humanos. À medida que Hans se aproximava do número
correto de batidas, os humanos mostravam-se mais tensos, e, quando
ele dava a batida que correspondia ao número correto, a tensão
atingia o clímax. Hans sabia como reconhecer isso pela atitude
corporal e pela fisionomia dos humanos. Ele então parava de bater e
via como a tensão dava lugar à admiração ou ao riso. Hans sabia
que tinha acertado.
O
caso de Hans com frequência é citado como exemplo de como os
humanos humanizam erroneamente os animais, atribuindo-lhes aptidões
ainda mais espantosas do que as que de fato possuem. A verdade, no
entanto, é que a lição a ser tirada é exatamente o oposto. Essa
história demonstra que, ao humanizar animais, usualmente
subestimamos a cognição animal e ignoramos as aptidões
únicas de outras criaturas. No que concerne à matemática, Hans
dificilmente seria um gênio. Qualquer garoto de onze anos faria
muito melhor. No entanto, em sua capacidade de deduzir emoções e
intenções da linguagem corporal, Hans era verdadeiramente um gênio.
Se um chinês me perguntasse em mandarim quanto é quatro vezes três,
não haveria a mínima possibilidade de eu acertar batendo com o pé
doze vezes somente como resultado de minha observação de expressões
faciais e linguagens corporais. Hans era dotado dessa capacidade
porque cavalos normalmente se comunicam entre si por meio de
linguagem corporal. Contudo, o que é notável no que diz respeito a
esse animal, é que ele pôde usar esse método para decifrar as
emoções e intenções não só de seus camaradas cavalos, mas
também dos não familiares humanos.
Se
animais são tão espertos, por que os cavalos não atrelam humanos a
carroças, ratos não fazem experimentos conosco e golfinhos não nos
fazem saltar por dentro de argolas? O Homo sapiens certamente
tem algumas aptidões únicas que lhe permitem dominar todos os
outros animais. Descartadas as exageradas noções de que o Homo
sapiens existe num plano totalmente diferente do dos outros
animais, e de que humanos possuem uma essência única, como alma ou
consciência, podemos finalmente descer ao nível da realidade e
examinar as aptidões físicas ou mentais específicas que conferem à
nossa espécie sua posição vantajosa.
A
maioria dos estudos menciona a produção de ferramentas e a
inteligência como fatores particularmente importantes para a
ascensão do gênero humano. A despeito de outros animais também
produzirem ferramentas, sem dúvida os humanos os suplantam nesse
aspecto. As coisas são menos claras no que diz respeito à
inteligência. Dedica-se uma indústria inteira a definir e medir a
inteligência, mas estamos longe de chegar a um consenso. Felizmente
não precisamos entrar nesse campo minado porque, não importa como
definamos inteligência, está bem claro que nem a inteligência nem
a fabricação de ferramentas podem explicar sozinhas a conquista do
mundo pelos Sapiens. Segundo as definições de inteligência
em geral, há 1 milhão de anos os humanos já eram os animais mais
inteligentes então existentes, bem como os campeões na fabricação
de ferramentas, no entanto continuavam a ser criaturas
insignificantes com reduzido impacto no ecossistema circundante.
Obviamente lhes faltava uma característica-chave, que não era nem a
inteligência nem a capacidade de fabricar ferramentas.
Talvez
o gênero humano tenha posteriormente dominado o planeta graças não
a algum ingrediente fugidio fundamental, mas tão somente à evolução
de uma inteligência ainda maior e até mesmo a uma capacidade mais
efetiva de fabricar ferramentas. Não parece que tenha sido assim,
porque, quando examinamos o registro histórico, não há uma
correlação direta da inteligência e da capacidade de fabricar
ferramentas com o poder de nossa espécie como um todo. Vinte séculos
atrás, o Sapiens mediano provavelmente tinha mais
inteligência e maior capacidade de fabricar ferramentas do que o
Sapiens mediano atual. Escolas e empregadores modernos podem
testar nossas aptidões de tempos em tempos, mas não importa quão
mal nos saiamos, o Estado-providência garante nossas necessidades
básicas. Na Idade da Pedra, a seleção natural testava o homem a
todo momento, em todos os dias de sua vida, e, se ele cometesse a
menor das falhas, estaria morto e enterrado em pouco tempo. Mas,
apesar da maior capacidade de fabricação de ferramentas que tinham
nossos ancestrais da Idade da Pedra, de suas mentes mais afiadas e de
seus sentidos muito mais aguçados, há 20 mil anos o gênero humano
era muito mais fraco do que é na atualidade.
No
decorrer desses 20 mil anos, o gênero humano passou da caça a
mamutes usando lanças com pontas de pedra à exploração do sistema
solar com espaçonaves em virtude não da evolução de mãos mais
ágeis ou de cérebros maiores (na verdade, atualmente nossos
cérebros parecem ser menores). Em vez disso, o fator crucial de
nossa conquista do mundo foi nossa capacidade de conectar muitos
humanos uns com os outros. Hoje dominamos completamente o planeta não
porque um indivíduo humano seja muito mais esperto e mais ágil do
que um indivíduo chimpanzé ou lobo, e sim porque o Homo sapiens
é a única espécie na Terra capaz de uma cooperação flexível e
em grande escala. Inteligência e fabricação de ferramentas foram,
obviamente, muito importantes. Porém, se os humanos não tivessem
aprendido a cooperar com flexibilidade e em grande escala, nossos
cérebros astutos e nossas mãos ágeis ainda estariam quebrando
lascas de pedra, e não átomos de urânio.
Se
cooperação é a chave, como então as formigas e as abelhas não
chegaram antes de nós à bomba nuclear, mesmo tendo aprendido a
cooperar em escala maciça milhões de anos antes dos humanos? É
porque sua cooperação carece de flexibilidade. Abelhas cooperam de
modos muito sofisticados, mas não são capazes de reinventar seu
sistema social da noite para o dia. Se uma colmeia depara com uma
nova ameaça ou uma nova oportunidade, as abelhas não são capazes,
por exemplo, de guilhotinar a rainha e estabelecer uma república.
Mamíferos
sociais como elefantes e chimpanzés cooperam de maneira muito mais
flexível do que abelhas, porém só o fazem com um número pequeno
de amigos e membros da família. Sua cooperação se baseia em
conhecimento pessoal. Se eu sou um chimpanzé e você um chimpanzé e
eu quero cooperar com você, preciso conhecê-lo pessoalmente: que
tipo de chimpanzé você é? Você é um chimpanzé legal? É um
chimpanzé malvado? Como posso cooperar com você se não o conheço?
Por tudo o que sabemos, somente os Sapiens são capazes de
cooperar de modos muito flexíveis com um grande número de
estranhos. Essa capacidade concreta — e não uma alma eterna ou
algum tipo único de consciência — explica nosso domínio sobre o
planeta Terra.
Yuval
Noah Harari,
in Homo Deus: Uma breve
história do amanhã
Nenhum comentário:
Postar um comentário