segunda-feira, 14 de outubro de 2019

A política e a calúnia

O orgulho, a maledicência, a cobiça podem forjar incessantemente no metal dos nossos interesses as suas armaduras mais rijas, mais luzentes, mais artísticas; os corações da multidão humana, adoradora da vitória, podem embevecer-se nos espetáculos da ferocidade e do egoísmo, como os deuses de Homero nos emblemas triunfantes do escudo de Aquiles, cinzelado pelo filho de Zeus; mas, à vossa aparição, caridade soberana, a um sorriso da vossa humildade, os mais duros, os céticos, os mais glaciais sentem que os homens não nasceram para a inimizade, que o mundo não pertence à violência, que a bondade é a mais dominadora de todas as forças. A boca de oiro dos Crisóstomos, a unção dos grandes pregadores são incapazes de exprimir-te. O Evangelho mesmo, na sua singeleza sobrenatural, não te refletiria, se o Evangelho não terminasse no Calvário: um mártir divino morrendo, sem um soluço de queixa, pelos homens que o crucificavam.
Não sei se haverá, neste auditório, quem sorria de semelhante linguagem nos meus lábios. A política semeia, há quase duas décadas, contra mim, a mais malévola reputação de impiedade, materialismo, ateísmo. A política? Não. A calúnia, a velha barregã posta ao serviço de todas as causas pudendas, a comadre imemorial da improbidade e da inveja, a sórdida alcoveta das torpezas do histerismo dos partidos, a ladra concubinária do jornalismo trapeiro, a sinistra envenenadora da honra dos estadistas e dos povos. Há quase vinte anos que ela me segue a pista, me profana o lar, me revolve o coração, me conta, por assim dizer, as pulsações, para as converter noutros tantos delitos.
Não lhe escapou o próprio leito mortuário de meu pai, cujos dedos ainda sinto entre os meus cabelos, nos carinhos com que me abençoava na hora derradeira, afagando-os; cujas mãos se apertaram às minhas, ao exalar o último suspiro; cuja memória recebeu de mim o culto de 12 anos de trabalho, consagrados à sua honra. Quando o Governo Provisório coroou a revolução com o decreto, que veio promulgar a liberdade religiosa, o borborinho das invenções ineptas, divulgadas por essa influência perversa, emprestava-me, entre as classes menos cultas, mais numerosas, mais ingênuas, a intenção de descoroar as imagens nos altares, de reduzir o culto à nudez, roubando-lhe as insígnias veneradas pelos fiéis.
Rui Barbosa, in Antologia

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