O
orgulho, a maledicência, a cobiça podem forjar incessantemente no
metal dos nossos interesses as suas armaduras mais rijas, mais
luzentes, mais artísticas; os corações da multidão humana,
adoradora da vitória, podem embevecer-se nos espetáculos da
ferocidade e do egoísmo, como os deuses de Homero nos emblemas
triunfantes do escudo de Aquiles, cinzelado pelo filho de Zeus; mas,
à vossa aparição, caridade soberana, a um sorriso da vossa
humildade, os mais duros, os céticos, os mais glaciais sentem que os
homens não nasceram para a inimizade, que o mundo não pertence à
violência, que a bondade é a mais dominadora de todas as forças. A
boca de oiro dos Crisóstomos, a unção dos grandes pregadores são
incapazes de exprimir-te. O Evangelho mesmo, na sua singeleza
sobrenatural, não te refletiria, se o Evangelho não terminasse no
Calvário: um mártir divino morrendo, sem um soluço de queixa,
pelos homens que o crucificavam.
Não
sei se haverá, neste auditório, quem sorria de semelhante linguagem
nos meus lábios. A política semeia, há quase duas décadas, contra
mim, a mais malévola reputação de impiedade, materialismo,
ateísmo. A política? Não. A calúnia, a velha barregã posta ao
serviço de todas as causas pudendas, a comadre imemorial da
improbidade e da inveja, a sórdida alcoveta das torpezas do
histerismo dos partidos, a ladra concubinária do jornalismo
trapeiro, a sinistra envenenadora da honra dos estadistas e dos
povos. Há quase vinte anos que ela me segue a pista, me profana o
lar, me revolve o coração, me conta, por assim dizer, as pulsações,
para as converter noutros tantos delitos.
Não
lhe escapou o próprio leito mortuário de meu pai, cujos dedos ainda
sinto entre os meus cabelos, nos carinhos com que me abençoava na
hora derradeira, afagando-os; cujas mãos se apertaram às minhas, ao
exalar o último suspiro; cuja memória recebeu de mim o culto de 12
anos de trabalho, consagrados à sua honra. Quando o Governo
Provisório coroou a revolução com o decreto, que veio promulgar a
liberdade religiosa, o borborinho das invenções ineptas, divulgadas
por essa influência perversa, emprestava-me, entre as classes menos
cultas, mais numerosas, mais ingênuas, a intenção de descoroar as
imagens nos altares, de reduzir o culto à nudez, roubando-lhe as
insígnias veneradas pelos fiéis.
Rui
Barbosa, in Antologia
Nenhum comentário:
Postar um comentário