O
cinema americano sempre deu um valor mágico às coisas do cotidiano.
Fred Astaire dançava com uma vassoura ou um cabide. Um manequim de
costureira era objeto de uma ária de amor. Num desenho animado, um
gato conversava com uma chaleira. As coisas da casa serviam para o
drama e para a comédia e para estas formas tipicamente americanas de
surrealismo que são o desenho e o musical. A própria casa americana
era um emblema. Para uma geração criada a filmes americanos, o
retrato da paz suburbana com que todos sonhavam era uma rua
arborizada com guris sardentos entregando jornais, de bicicleta, as
casas de duas garagens. Nestas casas habitava o bom espírito da
domesticidade, o espírito padrão da gente normal, isto é,
americana. Para o cinema, o terror americano estava nos becos das
grandes cidades. E os maus espíritos, em góticas mansões
retorcidas, longe dos gramados da classe média.
Em
seus filmes Steven Spielberg leva ao extremo esta adoração das
coisas da casa que é, no fundo, uma sacralização da infância. Mas
também remexe os espíritos domésticos e descobre o terror na cara
de um boneco ou na sombra de uma árvore na parede do quarto. O
terror nas menores coisas, outra marca da casa na criança.
Poltergeist e E.T. se passam praticamente no mesmo
lugar, uma comunidade de casas novas para famílias novas, na
Califórnia. Os dois filmes são delírios domésticos. Um,
Poltergeist, da imaginação adulta aterrorizada pela perda
das crianças. O outro da imaginação infantil ferida pela perda de
um pai. Com um esforço Poltergeist pode ser visto como a luta
da mãe para evitar que seus filhos nasçam de novo, sejam expelidos
do ventre protetor da casa para o mundo mortal. O menino de E.T.,
como o seu novo amigo extraterreno, quer que o lar lhe seja
restituído. Home. Nos dois filmes, as mães são quase tão
infantis quanto as crianças e acabam suas cúmplices. Se as crianças
tivessem decidido ir com E.T. na sua nave, que parece a
concepção espacial equivocada de algum artista do século XIX, a
mãe poderia ir junto para cuidar de todos, como a irmã mais velha
em Peter Pan. Em Poltergeist ninguém
tem dúvidas, no fim do filme, de que a mãe conseguirá protelar o
segundo parto das crianças por muito tempo ainda. A casa em
Poltergeist fica em
cima de um sumidouro que representa a morte, as coisas passadas, a
degeneração. A casa em E.T.
fica perto de uma floresta de histórias de fada, um cenário de
encantamento. Em nenhum dos dois casos seus habitantes tinham que ir
muito longe de casa para cumprirem suas fantasias. Para Spielberg,
que deve ter sido criado numa comunidade parecida com esta, onde o
resto do mundo só chegava pela TV, o universo da casa tem todos os
terrores, e toda a magia, de que uma imaginação precisa. O subúrbio
e suas mães esportivas são recriadas como mito. A magia do
cotidiano nunca foi tão longe.
Luís
Fernando Veríssimo, in
Banquete com os deuses
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