Falamos
em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso
comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se
a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais
climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida.
Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do
nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o
deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não
lemos os outros.
Vale
a pena ler livros ou ler a Vida quando o ato de ler nos converte num
sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens.
Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar
histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos
parece reinar apenas silêncio?
Lembrei
aqui o episódio do menino de rua porque tudo começa aí, na
infância. A infância não é um tempo, não é uma idade, uma
coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado
tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para
nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que
aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A
verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela
fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância
não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que,
fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
Recordo-me
de que a guerra tinha deflagrado no meu país e o meu pai me levava a
passear por antigas vias-férreas à procura de minérios brilhantes
que tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se
desmoronava mas ali estava um homem ensinando o seu filho a catar
brilhos entre as poeiras do chão. Essa foi uma primeira lição de
poesia. Uma lição de leitura do chão que todos os dias pisava. Meu
pai me sugeria uma espécie de intimidade entre o chão e o olhar. E
ali estava uma cura para uma ferida que eu não saberei nunca
localizar em mim, uma espécie de memória de alguém que viveu em
mim e fechou atrás de si um cortinado de brumas.
Pois
eu vivo praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão
em página. E estou aplicando o ensinamento de Ho Chi Minh que
despromove a prisão em possibilidade de página. Deste modo
aprendendo algo que sei que nunca chegarei a saber.
Enquanto
escrevia o meu romance O último voo do flamingo viajei pelo
litoral do sul de Moçambique à procura de mitos e lendas sobre o
mar. Mas tal não aconteceu. Dificilmente havia histórias ou lendas.
O imaginário destes povos pertencia invariavelmente à terra firme.
Apesar de habitarem o litoral, os seus sonhos moravam longe do
oceano.
Aos
poucos fui entendendo — aquelas zonas costeiras eram habitadas por
gente que chegou recentemente à beira-mar. São
agricultores-pastores que foram sendo empurrados para o litoral. A
sua cultura é a da imensidão da savana interior. Em suas línguas
não existem palavras próprias para designar barco. O pequeno
barquinho toma o nome a partir do inglês — bôte. O navio
grande é chamado de xitimela xa mati (literalmente, “o
comboio da água”). O próprio oceano é chamado de “lugar
grande”. Pescar diz-se “matar o peixe”. Deitar a rede é
“peneirar a água”. As armadilhas de pesca são construídas à
semelhança daquelas usadas na caça. Os territórios de colecta de
mariscos na praia são parcelados e sujeitos a pousio, exatamente
como se faz nos terrenos agrícolas. Ao contrário do que sucede no
centro e no norte de Moçambique, estes povos pescam sem serem
pescadores. São lavradores que também colhem no mar. O seu assunto
continua sendo a semente e o fruto. Os seus sonhos moram em terra e
os deuses viajam pela chuva.
Nós
estamos todos como esses povos que desconheciam a relação com o
mar. O chamado “progresso” nos empurrou para uma fronteira que é
recente, e olhamos o horizonte como se fosse um abismo sem fim. Não
sabemos dar nome às coisas e não sabemos sonhar neste tempo que nos
cabe como nosso. Os nossos deuses dificilmente têm moradia no atual
mundo.
Mas
é exatamente nesse espaço de fronteira que estamos aprendendo a ser
criaturas de fronteira, costureiros de diferenças e viajantes de
caminhos que atravessam não outras terras mas outras gentes. A
poesia de Gullar deu mote a este encontro. O poeta Gullar defende que
a poesia tem por missão desafiar o impossível e dizer o indizível.
O que o poeta faz é mais do que dar nome às coisas. O que ele faz é
converter as coisas em aparência pura. O que o poeta faz é iluminar
as coisas. Como nos versos com que encerro:
Toda
coisa tem peso:
uma
noite em seu centro.
O
poema é uma coisa
que
não tem nada dentro,
a
não ser o ressoar
de
uma imprecisa voz
que
não quer se apagar
— essa
voz somos nós.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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