segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Em louvor da Senhora do O

Quando Nando chegou à casa, Winifred, fresca do banho do mar, dava por sua vez banho em dois vira-latas que tinha adotado. Ele a viu sem ser visto, olhando da grade de fora o fundo de quintal onde se achava o tanque. Um cachorro ao pé do tanque, à espera, com aquele ar melancólico dos cães que sabem que vão tomar banho, e o outro numa nuvem de sabão, esfregado pelas mãos capazes de Winifred. Mulher ruiva vestida de azul. Cão branco de espuma. Cão amarelo. Coqueiro marrom e verde-escuro. Mar verde-gaio. Pintores deviam ver o mundo assim. Cortavam, emolduravam. Cores principalmente. Winifred dava um quadro de aquecer paredes.
Winifred levantou a cabeça de repente, sacudindo o cabelo para trás. Gritou rindo:
Nando! Isso não vale. O que é que você está fazendo aí, feito um urubu na cerca?
Juro que você pensou num anum, Winifred.
Claro, claro! Que horror chamar você de urubu. Mas mesmo anum é bicho muito preto. Por que é que vocês não largam essa batina medonha, Nando? Você devia ficar muito bem de branco, sapato de tênis. Que bom que você veio até cá. Há dias e dias que não nos vemos.
Vocês também não apareceram mais no mosteiro — disse Nando.
Pois é. Leslie tem andado tão ocupado. E eu confesso que fiquei sem coragem de ir sozinha buscar você no mosteiro. Acho que estou me abrasileirando.
Leslie está lá dentro? — disse Nando.
Não, mas não tarda.
Então eu volto mais tarde.
Não seja tolo, Nando. Você vai esperar Leslie aqui em casa, conversando comigo. Eu adoro conversar com você e você e Leslie estão sempre discutindo, valha-me Deus.
Ele está pesquisando no Instituto Joaquim Nabuco?
Qual o quê. Não sai do Nossa Senhora do O. Vive possuído da maior fúria revolucionária e para unir o útil ao agradável pesquisa o próprio Engenho. Um dia desses se mete numa briga e vamos ter de apelar para o cônsul de Sua Majestade. E você? Não consigo deixar você em paz, Nando. Quando é a viagem para o Xingu?
Nando sorriu, fez um vago gesto com a mão.
Eu estive pensando no assunto. E sabe o que é que eu acho?
Sim.
Você não zanga?
Claro que não.
Acho que você se habituou de tal maneira a justificar sua vida em nome desse sonho de transformar os índios não sei em quê, que não vai para o Xingu de medo de falhar e ficar depois sem assunto. Você nem sabe o que há de fazer com eles.
Não, não sei, é verdade.
Nem acredita possível reeditar a República dos jesuítas.
N... não. Provavelmente é impossível. Não tenho nenhum plano, se é isso que você quer dizer. Mas tenho a certeza de que o Senhor me dirá o que fazer, uma vez chegando eu lá.
Winifred olhou Nando com doçura e falou, branda.
Transporte Deus não dá, Nando. Você precisa pelo menos chegar ao Xingu.
Leslie parou a camioneta à porta da casa.
Nando! — disse Leslie. — Que boa surpresa.
Estava com saudades de vocês, seu fujão — disse Nando. — Winifred me ofereceu uma água de coco e eu não resisti.
Ao refresco ou a Winifred? — disse Leslie.
Depois você me acusa de escandalizar Nando — disse Winifred. — Isto não é pergunta que se faça a um jovem padre bem-comportado.
Sentaram-se depois. Leslie se espreguiçou, estirando os músculos depois da longa viagem de ida e volta ao Engenho.
As coisas de um modo geral se acalmaram lá — disse Leslie. — Mas há um ponto que fica mais negro cada dia. O da menina Maria do Egito.
Que houve com ela? — disse Winifred.
É o que não houve — disse Leslie. — As regras não vieram.
É preciso separar a moça do pai — disse Nando.
Maria do Egito foi para um engenho vizinho — disse Leslie — onde tem tios. O pai há de suspeitar qual seja o paradeiro de Maria. E continua sombrio, agarrado à peixeira, falando sempre nas ordens que recebe de Deus.
Jesus, o que é que se há de fazer? — disse Winifred.
A melhor coisa — disse Leslie — seria trancafiar Nequinho num hospício. Mas para isto é preciso intervenção da polícia, pois o homem não está louco. Reage dentro da sua cultura. Mas a polícia, já de má vontade com o Engenho, não dá atenção ao caso.
Então temos de tirar a moça de lá — disse Winifred.
Para um lugar que a família inteira desconheça — disse Leslie. — É o jeito. Senão Nequinho descobre, com ameaças, onde ela está. Uma trapalhada. Bem. Vamos tratar de assunto mais curioso. Tenho aqui uns apontamentos para você, Nando. Isto é para que não se diga que estamos envelhecendo e não disputamos mais o nosso boxe de Reforma e Contrarreforma.
Leslie tirou um caderno de notas do bolso.
Que apontamentos são esses? — disse Nando.
Trechos de Vieira, dos Sermões. Estou convencido, Nando, de que aquilo que Vieira chamava de Quinto Império era o Império bíblico português mas... mas... Adivinha!
Estou muito em paz hoje para adivinhações — disse Nando.
Mas submetido ao Signo da Virgem! É a insurreição de brasileiros e portugueses de que eu falei a você. O golpe de Estado mariano.
Nando balançou a cabeça.
O último refúgio dos povos que perderam o poder real é a extravagância, é a famosa excentricidade britânica.
Escute, Nando, escute isso. Olhe como Vieira fala a Deus: “Se sois sol e sol de justiça, antes que se ponha o deste dia, deponde os rigores da vossa! Deixai lá o Signo rigoroso de Leão, e dai um passo ao Signo da Virgem, signo propício e benéfico! Recebei influências humanas, de quem recebestes a humanidade! Perdoai-nos, Senhor, pelos merecimentos da Virgem Santíssima! Perdoai-nos por seus rogos, ou perdoai-nos por seus impérios; que, se como criatura vos pede por nós o perdão, como mãe vos pode mandar e vos manda que nos perdoeis.” Trata-se de um ultimato!
Nando riu, balançando a cabeça, afetando o ar piedoso com que tratamos os débeis de espírito.
Isto é a linguagem de tantos outros pregadores naquela época rebuscada! — disse Nando.
Ah, sim? E as famosas acusações que faz no mesmo sermão aos holandeses e a Deus, aliado deles? Ouve lá: “Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas nas vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo corpo; mas na da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe, não sei como isto pode estar com a piedade e o amor de filho.” Espere, espere, você vai dizer que é ainda um sermão de guerra, para inflamar a consciência católica contra o inimigo. Mas e isto aqui, esta idolatria? “Quando um imenso cerca outro imenso, ambos são imensos: mas o que cerca, maior imenso que o cercado; e, por isso, se Deus, que foi o cercado, é imenso, o ventre que o cercou não só há de ser imenso senão imensíssimo. E tal foi o claustro virginal do útero de Maria. Deus, que foi o concebido, imenso, e o útero, que o concebeu, porque o cercou, imensíssimo.”
Vieira estava citando — disse Nando — um teólogo... Tenho ideia de que era...
Leslie se impacientou.
Ora, Nando, ele sempre citava teólogos. Qualquer pregador faz. Mas Vieira agrava tudo, marca o Signo da Virgem em tudo, amplia tudo num amor idólatra. Você não acha que os termos que ele usa são... Nando!
Nando voltou de uma distração.
Desculpe, eu estava...
Não sei o que você estava pensando — disse Leslie — mas não estava prestando atenção, isso não estava.
Espere... Ah, claro, que bobagem.
O quê? — disse Leslie.
Então vem daí o seu interesse pelo Engenho?
Como assim?
Teu famoso Nossa Senhora do O — disse Nando. — O Sermão que você está citando é em louvor da Senhora do O.
Leslie manteve a fleuma e a compostura.
Inicialmente foi por isso talvez que procurei o Engenho. Imaginei que lá houvesse ruínas de uma das tais capelas dedicadas à Virgem como senhora absoluta do céu e da terra.
Quer dizer que o seu interesse pela questão social — disse Nando — era um tanto... histórico e místico?
Enquanto que o seu interesse pela questão social é tão nulo quanto o seu interesse por uma questão que pode ainda hoje abalar a ortodoxia católica. Eu realmente fui pela primeira vez ao Senhora do O pensando numa descoberta erudita. Mas juro que a descobrir o que buscava prefiro minorar a miséria daqueles desgraçados.
Antonio Callado, in Quarup

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