Quando
Nando chegou à casa, Winifred, fresca do banho do mar, dava por sua
vez banho em dois vira-latas que tinha adotado. Ele a viu sem ser
visto, olhando da grade de fora o fundo de quintal onde se achava o
tanque. Um cachorro ao pé do tanque, à espera, com aquele ar
melancólico dos cães que sabem que vão tomar banho, e o outro numa
nuvem de sabão, esfregado pelas mãos capazes de Winifred. Mulher
ruiva vestida de azul. Cão branco de espuma. Cão amarelo. Coqueiro
marrom e verde-escuro. Mar verde-gaio. Pintores deviam ver o mundo
assim. Cortavam, emolduravam. Cores principalmente. Winifred dava um
quadro de aquecer paredes.
Winifred
levantou a cabeça de repente, sacudindo o cabelo para trás. Gritou
rindo:
— Nando!
Isso não vale. O que é que você está fazendo aí, feito um urubu
na cerca?
— Juro
que você pensou num anum, Winifred.
— Claro,
claro! Que horror chamar você de urubu. Mas mesmo anum é bicho
muito preto. Por que é que vocês não largam essa batina medonha,
Nando? Você devia ficar muito bem de branco, sapato de tênis. Que
bom que você veio até cá. Há dias e dias que não nos vemos.
— Vocês
também não apareceram mais no mosteiro — disse Nando.
— Pois
é. Leslie tem andado tão ocupado. E eu confesso que fiquei sem
coragem de ir sozinha buscar você no mosteiro. Acho que estou me
abrasileirando.
— Leslie
está lá dentro? — disse Nando.
— Não,
mas não tarda.
— Então
eu volto mais tarde.
— Não
seja tolo, Nando. Você vai esperar Leslie aqui em casa, conversando
comigo. Eu adoro conversar com você e você e Leslie estão sempre
discutindo, valha-me Deus.
— Ele
está pesquisando no Instituto Joaquim Nabuco?
— Qual
o quê. Não sai do Nossa Senhora do O. Vive possuído da maior fúria
revolucionária e para unir o útil ao agradável pesquisa o próprio
Engenho. Um dia desses se mete numa briga e vamos ter de apelar para
o cônsul de Sua Majestade. E você? Não consigo deixar você em
paz, Nando. Quando é a viagem para o Xingu?
Nando
sorriu, fez um vago gesto com a mão.
— Eu
estive pensando no assunto. E sabe o que é que eu acho?
— Sim.
— Você
não zanga?
— Claro
que não.
— Acho
que você se habituou de tal maneira a justificar sua vida em nome
desse sonho de transformar os índios não sei em quê, que não vai
para o Xingu de medo de falhar e ficar depois sem assunto. Você nem
sabe o que há de fazer com eles.
— Não,
não sei, é verdade.
— Nem
acredita possível reeditar a República dos jesuítas.
— N...
não. Provavelmente é impossível. Não tenho nenhum plano, se é
isso que você quer dizer. Mas tenho a certeza de que o Senhor me
dirá o que fazer, uma vez chegando eu lá.
Winifred
olhou Nando com doçura e falou, branda.
— Transporte
Deus não dá, Nando. Você precisa pelo menos chegar ao Xingu.
Leslie
parou a camioneta à porta da casa.
— Nando!
— disse Leslie. — Que boa surpresa.
— Estava
com saudades de vocês, seu fujão — disse Nando. — Winifred me
ofereceu uma água de coco e eu não resisti.
— Ao
refresco ou a Winifred? — disse Leslie.
— Depois
você me acusa de escandalizar Nando — disse Winifred. — Isto não
é pergunta que se faça a um jovem padre bem-comportado.
Sentaram-se
depois. Leslie se espreguiçou, estirando os músculos depois da
longa viagem de ida e volta ao Engenho.
— As
coisas de um modo geral se acalmaram lá — disse Leslie. — Mas há
um ponto que fica mais negro cada dia. O da menina Maria do Egito.
— Que
houve com ela? — disse Winifred.
— É
o que não houve — disse Leslie. — As regras não vieram.
— É
preciso separar a moça do pai — disse Nando.
— Maria
do Egito foi para um engenho vizinho — disse Leslie — onde tem
tios. O pai há de suspeitar qual seja o paradeiro de Maria. E
continua sombrio, agarrado à peixeira, falando sempre nas ordens que
recebe de Deus.
— Jesus,
o que é que se há de fazer? — disse Winifred.
— A
melhor coisa — disse Leslie — seria trancafiar Nequinho num
hospício. Mas para isto é preciso intervenção da polícia, pois o
homem não está louco. Reage dentro da sua cultura. Mas a polícia,
já de má vontade com o Engenho, não dá atenção ao caso.
— Então
temos de tirar a moça de lá — disse Winifred.
— Para
um lugar que a família inteira desconheça — disse Leslie. — É
o jeito. Senão Nequinho descobre, com ameaças, onde ela está. Uma
trapalhada. Bem. Vamos tratar de assunto mais curioso. Tenho aqui uns
apontamentos para você, Nando. Isto é para que não se diga que
estamos envelhecendo e não disputamos mais o nosso boxe de Reforma e
Contrarreforma.
Leslie
tirou um caderno de notas do bolso.
— Que
apontamentos são esses? — disse Nando.
— Trechos
de Vieira, dos Sermões. Estou convencido, Nando, de que aquilo que
Vieira chamava de Quinto Império era o Império bíblico português
mas... mas... Adivinha!
— Estou
muito em paz hoje para adivinhações — disse Nando.
— Mas
submetido ao Signo da Virgem! É a insurreição de brasileiros e
portugueses de que eu falei a você. O golpe de Estado mariano.
Nando
balançou a cabeça.
— O
último refúgio dos povos que perderam o poder real é a
extravagância, é a famosa excentricidade britânica.
— Escute,
Nando, escute isso. Olhe como Vieira fala a Deus: “Se sois sol e
sol de justiça, antes que se ponha o deste dia, deponde os rigores
da vossa! Deixai lá o Signo rigoroso de Leão, e dai um passo ao
Signo da Virgem, signo propício e benéfico! Recebei influências
humanas, de quem recebestes a humanidade! Perdoai-nos, Senhor, pelos
merecimentos da Virgem Santíssima! Perdoai-nos por seus rogos, ou
perdoai-nos por seus impérios; que, se como criatura vos pede por
nós o perdão, como mãe vos pode mandar e vos manda que nos
perdoeis.” Trata-se de um ultimato!
Nando
riu, balançando a cabeça, afetando o ar piedoso com que tratamos os
débeis de espírito.
— Isto
é a linguagem de tantos outros pregadores naquela época rebuscada!
— disse Nando.
— Ah,
sim? E as famosas acusações que faz no mesmo sermão aos holandeses
e a Deus, aliado deles? Ouve lá: “Não me admiro tanto,
Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas nas
vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo corpo;
mas na da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe, não sei como
isto pode estar com a piedade e o amor de filho.” Espere, espere,
você vai dizer que é ainda um sermão de guerra, para inflamar a
consciência católica contra o inimigo. Mas e isto aqui, esta
idolatria? “Quando um imenso cerca outro imenso, ambos são
imensos: mas o que cerca, maior imenso que o cercado; e, por isso, se
Deus, que foi o cercado, é imenso, o ventre que o cercou não só há
de ser imenso senão imensíssimo. E tal foi o claustro virginal do
útero de Maria. Deus, que foi o concebido, imenso, e o útero, que o
concebeu, porque o cercou, imensíssimo.”
— Vieira
estava citando — disse Nando — um teólogo... Tenho ideia de que
era...
Leslie
se impacientou.
— Ora,
Nando, ele sempre citava teólogos. Qualquer pregador faz. Mas Vieira
agrava tudo, marca o Signo da Virgem em tudo, amplia tudo num amor
idólatra. Você não acha que os termos que ele usa são... Nando!
Nando
voltou de uma distração.
— Desculpe,
eu estava...
— Não
sei o que você estava pensando — disse Leslie — mas não estava
prestando atenção, isso não estava.
— Espere...
Ah, claro, que bobagem.
— O
quê? — disse Leslie.
— Então
vem daí o seu interesse pelo Engenho?
— Como
assim?
— Teu
famoso Nossa Senhora do O — disse Nando. — O Sermão que você
está citando é em louvor da Senhora do O.
Leslie
manteve a fleuma e a compostura.
— Inicialmente
foi por isso talvez que procurei o Engenho. Imaginei que lá houvesse
ruínas de uma das tais capelas dedicadas à Virgem como senhora
absoluta do céu e da terra.
— Quer
dizer que o seu interesse pela questão social — disse Nando —
era um tanto... histórico e místico?
— Enquanto
que o seu interesse pela questão social é tão nulo quanto o seu
interesse por uma questão que pode ainda hoje abalar a ortodoxia
católica. Eu realmente fui pela primeira vez ao Senhora do O
pensando numa descoberta erudita. Mas juro que a descobrir o que
buscava prefiro minorar a miséria daqueles desgraçados.
Antonio
Callado, in Quarup
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