Sem
experiência de solidão, os novos presos eram barulhentos e
inquietos: batiam nas grades a caneca de lata, andavam sem parar na
cela, gritavam palavrões à janela. Seus brados não eram ouvidos na
estrada, onde os carros erguiam nuvem de pó — o pó vermelho que
ia mais tarde assentar nas mãos cruzadas de Trajano. A gente ao
longe distinguia nas janelas o reflexo dos espelhos com que os
prisioneiros descobriam a paisagem.
Um
deles enfeitiçou-se pela mulher — não sabia se menina ou velha —
que de um quintal acenara para a cadeia. O preso convenceu-se de que
fora para ele. Anos depois — seria uma pessoa ou simples vestido
secando no arame? — descrevia o seu romance com tal mulher.
Trajano
sem bulir horas a fio, já não cocava os dedos limpando o sangue
invisível. Nem subia na cama para olhar pela grade: o seu mundo da
janela para dentro. Ecos da cidade distante, isolava-os de sua fonte:
ouvia o sino, o apito, o zumbido, sem pensar no avião, no trem e na
igreja. Debaixo da janela, os pingos no rosto, sem que pensasse: a
chuva, está chovendo.
Pudera
com o pior inimigo — o domingo. Vento aflitivo irrompia nos
corredores: sineta de missa, a faixa de sol no chão, alegre vozeio
feminino no pátio ... Todos os presos (muitos haviam ido ao barbeiro
no sábado) olhavam as portas bem assim as vacas à passagem do trem.
Outros dias, cubículo aberto algumas horas, podiam circular pelas
galerias. Domingo, trancada a porta, satisfaziam-se nos baldes, que
exalavam no fundo da cela. Moringas vazias...
Inútil
rolarem a caneca na grade, sedentos, aspirando a cachaça no bafo dos
guardas.
À
janela o eterno imprudente com seu espelho. Os bem comportados, esses
podiam receber visita e, se era mulher, depois que ela partia,
procuravam o canto mais escuro. Trajano jamais recebeu visita:
estirava-se no catre, sem se mexer, sem pensar em nada. Desprezava a
réstia de sol que durante a manhã se oferecia a seus pés.
Alguns
mastigavam bolas de papel, atiravam-nas contra o teto, ali grudadas
pela saliva.
Das
bolas por um fio pendiam fita vermelha e bandeirinha azul. Deitados,
contemplavam as nuvens coloridas, agitadas pelo vento entre as altas
grades e, no crepúsculo, farfalhantes folhas de laranjeira.
Outros
guardavam migalhas para o ratão gordo que corria os cubículos —
no de Trajano ele não entrava. O mais pobre dos presos, único que
não se afligia com ladrão. Seus bens um pente, espelhinho redondo,
medalha de cobre no pescoço. Os reclusos garatujavam na parede o
bicho de duas costas, a lua, o sol, coração gotejando sangue. Na
cafua de Trajano, manchas de umidade.
No
seu oitavo ano, baixada ordem de alfabetização. Segundo os rumores,
vingança do sargento da guarda: quem se opõe aos caprichos do
carcereiro?
Desde
a primeira aula, a professora reparou no moço de barbicha rala,
cabelo molhado na testa e um remoinho atrás, por estar sempre
deitado. Distribuía os cadernos, corrigida a lição e, antes de
receber o seu, Trajano enxugava a mão na calça riscada.
Demais
o calor, na sala abafada o odor sebento dos prisioneiros. O pó de
giz suspenso no ar borrifava a saia preta de Gracinda. Todos a
desnudavam por entre o piscar das pálpebras.
Nem
um copiava a frase que ela escrevia no quadro: ASA DA EMA. Na
primeira fila deu com ele e, no branco do olho, a pinta vermelha. Ao
recolher os cadernos observou a mão que tremia.
Em
casa, fechou a porta do quarto, antes de emendar as lições —
único aluno de unhas limpas.
Como
pudera deixá-las crescer sem quebrar: longas, em pontas, fantásticas
meias-luas? Abrindo o caderno achou, em vez da lição e a ocupar
toda a página, um desenho obsceno. O mesmo desenho no banheiro da
escola a anunciar que um dos meninos se fizera homem. Não tinha
poder de o destruir nem lugar seguro para escondê-lo — ou para a
moça esconder-se dele.
Guardou-o
entre seu corpo e o vestido. Desobedecendo ao pai, não voltou à
penitenciária — exceção de Trajano, nem um preso aprendeu a ler.
A
sombra do casarão arrastava-se pelo campo no fim da tarde, para
atingir a estrada e, do outro) lado, a sua casa. Ao saber do pai que
os prisioneiros, com o espelhinho na palma da mão, vigiavam a
paisagem, surpreendeu no rosto de um aluno, dentro dai escola, a
pinta vermelha no olho e, meu Deus, em qual deles? A veneziana do
quarto dava para o presídio. Gracinda deixou de a abrir e despia-se
no escuro. Uma noite postou-se nua diante da janela, era lua cheia
para que a pudesse ver.
Trajano
queixou-se de inchaço. O dentista não descobriu dente cariado e
ficou de bochecha intumescida, lenço amarrado no queixo. As paredes
cobertas; por imagem sórdida, repetida de alto a baixo, e nos
espaços em branco a frase da cartilha: Asa da Ema.
Depois
atormentado pelos bichos: a cabeça encheu-se de piolho, tiveram de a
rapar.
Seu
estrado fervia de percevejos. No sono o ratão mordeu - lhe o dedo
grande do pé.
Provocou
os tipos mais perigosos, sem que aceitassem o desafio. Agrediu o
carcereiro, encerrado na solitária. Gritou até perder a voz e,
quando saiu, havia roído tanto as unhas que os dedos sangravam..
Pendurado nas grades, rolava exausto ao chão. Mesmo à noite,
espelho lá fora, sem nada enxergar — apenas, a um gesto convulso,
o próprio rosto lívido. Nada viu, a não ser (os presos sofrem a
influência da lua) a moça que se despia à janela e penteava os
longos cabelos negros.
Lidava
na horta, erguia a cabeça e afrontava o sol — queria ficar cego?
Esfregando o cabo da colher no cimento fizera um estoque e cada noite
afiava 3-ponta. Com restos de sabão modelou boneco que beijava da
cabeça aos pés para enterrar-lhe um alfinete no peito. E, dormindo,
sonhava com a professora nua.
Ziziava
o sol em todas as vidraças, a mocinha de volta para casa. Trajano
saltou o arame farpado e feriu os dedos nos cacos de vidro do muro.
Diante da casa os dois se encontraram. O sargento estava almoçando.
Gracinda não gritou, os cadernos espalhados pelo chão. Trajano
surgiu na estrada — os pés descalços erguiam pequenas nuvens de
pó. Cambaleava, cansado da fuga, limpou a boca nas costas dai mão —
a mão crispada sobre o estoque. Chocou-se: contra a moça que
estendeu os braços para o repelir; ou abraçar, e rolaram pelo chão.
A
mãe de Gracinda veio à porta e pôs-se a gritar. Acorreu o sargento
em socorro da filha, golpeada vinte e três vezes. Enquanto lhe
mordia o rosto e rasgava a blusa de cambraia, beijando-a e gemendo de
amor, o preso enterrava o estoque no próprio peito.
O
sargento separou com dificuldade os corpos e, ainda que o moço
estivesse morto, desfechou-lhe um tiro de fuzil na nuca, afundando a
cara na terra vermelha. Arrastou o corpo para o quintal, atirou-o na
fossa negra Gracinda enterrada em uniforme de normalista, véu branco
de filo no rosto, para esconder a mancha dos beijos. O sargento não
a viu no caixão (com a fita azul de filha de Maria, morreu virgem)
nem acompanhou o enterro, defendendo contra os coveiros o corpo de
Trajano. No casarão cinzento os presos seguiam no espelho o voo dos
corvos que fechavam seus círculos. Já se infiltrava com o pó da
estrada, por entre os corredores, no fundo das celas, sob a porta da
solitária, a doce catinga dos mortos.
Dalton
Trevisan, in
Novelas nada exemplares
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