Se
não podemos explicar a mente, e se não sabemos que função ela
desempenha, por que não a descartamos? A história da ciência está
repleta de conceitos e teorias abandonados. Por exemplo, os primeiros
cientistas modernos que tentaram explicar a movimentação da luz
postularam a existência de uma substância chamada éter, que
supostamente preenchia o universo inteiro. Pensava-se que a luz fosse
feita de ondas de éter. Contudo, os cientistas não conseguiram
achar evidências empíricas da existência do éter, ao passo que
apresentaram teorias alternativas melhores sobre a luz.
Consequentemente, jogaram o éter na lixeira da ciência.
Similarmente,
durante 4 mil anos os humanos recorreram a Deus para explicar
numerosos fenômenos naturais. O que desencadeia o relâmpago? Deus.
O que faz a chuva cair? Deus. Como começou a vida na Terra? Deus fez
isso. Nos séculos mais recentes, os cientistas não descobriram
nenhuma evidência empírica da existência de Deus, enquanto
encontravam explicações muito mais detalhadas para os relâmpagos,
a chuva e a origem da vida. Como resultado, com exceção de alguns
subcampos da filosofia, nenhum artigo em nenhuma revista científica
de análise crítica leva a sério a existência de Deus.
Historiadores não alegam que os aliados venceram a Segunda Guerra
Mundial porque Deus estava do seu lado; economistas não atribuem a
Deus a culpa pela crise econômica de 1929; e geólogos não invocam
a vontade divina para explicar os movimentos das placas tectônicas.
A
mesma sina sobreveio à alma. Durante milhares de anos, as pessoas
acreditaram que todas suas ações e decisões emanavam da alma. Mas,
na falta de qualquer evidência que a suportasse, e devido à
existência de teorias muito mais detalhadas, as ciências da vida
descartaram a alma. Como indivíduos privados, muitos biólogos e
médicos podem continuar acreditando nisso. Mas nunca escrevem a esse
respeito em publicações científicas sérias.
Talvez
a mente devesse se juntar à alma, a Deus e ao éter na lixeira da
ciência... Afinal, ninguém jamais viu experiências de dor e de
amor por um microscópio, e dispomos de uma explicação bioquímica
muito detalhada para a dor e o amor que não deixa margem a
experiências subjetivas. No entanto, existe uma diferença crucial
entre mente e alma (bem como entre mente e Deus). Enquanto a
existência de almas eternas é pura conjectura, a experiência da
dor é uma realidade muito direta e tangível. Quando eu piso num
prego, posso ter certeza absoluta de que estou sentindo dor (mesmo
que até então me falte uma explicação científica para isso). Em
contraste, não posso ter certeza de que, se a ferida infeccionar e
eu morrer de gangrena, minha alma continuará a existir. Essa é uma
história muito interessante e reconfortante na qual eu gostaria de
acreditar, mas de cuja veracidade não tenho nenhuma evidência
direta. Como todos os cientistas experimentam constantemente
sentimentos subjetivos como dor e dúvida, eles não podem negar sua
existência.
Outra
maneira de descartar a mente e a consciência é negar sua
relevância, em vez de negar sua existência. Alguns cientistas —
como Daniel Dennet e Stanislas Dehaene — alegam que todas as
perguntas relevantes podem ser respondidas estudando as atividades do
cérebro, sem nenhum recurso a experiências subjetivas. Assim,
cientistas podem apagar com segurança “mente”, “consciência”
e “experiências subjetivas” de seus vocabulários e artigos.
Entretanto, como veremos nos capítulos seguintes, todo o edifício
da política e da ética modernas fundamenta-se em experiências
subjetivas, e são poucos os dilemas éticos que podem ser resolvidos
com referência estrita a atividades cerebrais. Por exemplo, o que há
de errado com a tortura ou o estupro? Do ponto de vista puramente
neurológico, quando o humano é torturado ou estuprado, certas
reações bioquímicas acontecem no cérebro, e vários sinais
elétricos movimentam-se de um agrupamento de neurônios a outro. O
que, possivelmente, há de errado nisso? A maioria das pessoas
modernas tem aversão ética à tortura e ao estupro por causa das
experiências subjetivas envolvidas. Se algum cientista quiser
argumentar que experiências subjetivas são irrelevantes, terá o
desafio de explicar por que a tortura ou o estupro estão errados sem
nenhuma referência a experiências dessa natureza.
Finalmente,
alguns cientistas admitem que a consciência é real e efetivamente
pode ter grande valor moral e político, mas que isso não desempenha
nenhuma função biológica. A consciência é o subproduto
biologicamente inútil de certos processos cerebrais. Motores a jato
roncam ruidosamente, mas o ruído não impele a aeronave para a
frente. Humanos não precisam de dióxido de carbono, contudo toda
expiração enche o ar ainda mais com esse composto. Da mesma forma,
a consciência pode ser uma espécie de poluição mental produzida
pelo disparo de redes neurais complexas. Ela não faz nada. Apenas
está lá. Se for verdade, isso implica que toda dor e todo prazer
experimentado por bilhões de criaturas durante milhões de anos são
apenas poluição mental. Essa é uma ideia na qual vale a pena
pensar, mesmo que não seja verdade. Mas é bem surpreendente
constatar que, em 2016, trata-se da melhor teoria relativa à
consciência que a ciência contemporânea tem a nos oferecer.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
Nenhum comentário:
Postar um comentário