sábado, 3 de agosto de 2019

Fellini


Sendo o mais narcisista, Fellini é o mais italiano dos diretores italianos. E o mais divertido. O narcisismo italiano não implica introspecção ou exagerada auto-análise. Nem um fascínio exclusivo com o próprio umbigo. Ao contrário, é tão expansivo e abrangente que requer um espelho do tamanho da Itália. A paisagem italiana emoldura as poses de seus artistas e reflete suas caretas com cândida cumplicidade. A paisagem dispensa palavras. Assim a melhor comédia italiana não precisa da piada verbal ou de exagero da mímica para se realizar: basta enfatizar esta ou aquela característica nacional até o ridículo. E a autogozação é apenas o lado mais simpático do narcisismo. Para os diretores “sérios”, a generosidade maternal do cenário não é menor. Lá nunca faltará a um Antonioni uma parede enigmaticamente branca contra a qual filmar suas angústias. Visconti não precisa ir mais longe do que o pórtico da sua casa para descobrir uma metáfora visual adequada à decadência que ele filma com tanta volúpia. Fora de casa eles se perdem. Sem um cenário loquaz, evocativo e familiar que os exima de entrar em detalhes ou recorrer às palavras, os dois quase se comprometem. Os deuses malditos, de Visconti, é fascinante como espetáculo, mas simplista nas suas implicações políticas e primário como uma ópera nas suas pretensões psicológicas. Blow Up – depois daquele beijo era um filme temático que funcionaria em qualquer cenário, mas Zabriskie Point chega a ser embaraçoso. Fellini não filma fora da Itália porque sabe que um minuto longe do espelho arruinaria sua imagem.
Fellini não se tortura com a impenetrabilidade dos objetos, com a indiferença das coisas que cercam o drama humano, como Antonioni. Também não tateia no cenário com a desencantada sensualidade de eunuco de um Visconti. O que interessa a ele é a superfície dócil, a seu serviço, a maneira como o jogo de luz e sombra contra aquela parede romana realça o seu perfil, ou como a fotogênica solidão desta rua provinciana evoca um seu estado de espírito na adolescência. Fellini serve-se da sua terra e dos seus conterrâneos com a inocente perversidade de um filho mimado. Ele próprio já descreveu a Itália como uma “mãe” absorvente, cálida, protetora e sufocante que inferniza a vida dos filhos, mas longe da qual é impossível viver. E a imagem é perfeita. No resto do mundo o Estado é uma projeção paterna: na Itália la mamma reina absoluta. Nem o fascismo escapou da tirania maternal. O que era Mussolini senão a personificação elevada ao absurdo do filho mimado na sua melhor roupa de domingo, posando de machão para o orgulho da mamma? Antonioni se refugiou dos seus carnudos tentáculos no ascetismo e no exílio. Visconti não perde oportunidade de lhe meter uma faca na barriga. Só Fellini a aceita, e usa, como um filho favorito. A sua superfície, o seu encanto visual, seus anacronismos grotescos, as suas tetas e os seus terrores. Fellini é o melhor diretor italiano justamente porque é o mais superficial, o mais egocêntrico, o mais posudo, o mais filho da mãe. Certamente o que o cinema ensina, ou deveria ensinar, é que não existe nada por trás do espelho, que qualquer busca de um “significado” oculto nas coisas se espatifa contra sua superfície. O cinema é a arte dos sentidos, não do intelecto. O drama humano pode ser contado numa sucessão de poses. E isso é ofício de narcisista. Quanto mais, melhor.
La mamma e a Santa Madre. A identificação é inevitável. Para a imaginação infantil a mãe é ao mesmo tempo fada e megera, o colo farto e o domínio castrador. A Igreja também consola e castra, embala e sufoca. A sua presença na Itália é, literalmente, marcante. Quem escapa do seu regaço tem cicatrizes para alisar pelo resto da vida. O herói felliniano nunca se decide entre a mulher espiritual, angulosa, de boa leitura mas poucos quadris e suficientemente neurótica para ser um papo inteligente, e a Outra, a confortável Santa Madre, ou Sandra Milo, com a sua exuberância mamilar. Não era por acaso que Anita Ekberg aparecia em A doce vida vestida de padre estilizado.
Fellini, como seus heróis, hesita entre a pose de intelectual maduro e seu ninho despreocupado no seio da Igreja. Os dois impulsos se envenenam mutuamente. O ranço religioso não permite ao intelectual ir além de divagações juvenis estilo “se Deus não existe tudo é permitido”, e como isso me chateia. A descrença entorta sua visão da experiência religiosa, e o ato de fé é sempre retratado como uma manifestação a ser lamentada da grotesca miséria humana. Quase todos os filmes de Fellini têm cenas de furor místico, filmadas invariavelmente con brio e ânimo vingativo. A procissão em Estrada da vida. A visita ao santo milagroso de Cabiria e seus amigos. As sessões com os espíritos de Julieta. A romaria ao local da aparição em A doce vida. O que salva Fellini é que, sendo um superficial incurável, ele se preocupa com a aparência mais do que com a essência do que filma. Com as poses, com o ornamento. Já houve angústia existencial mais fotogênica, mais glamourosa, mais atraente do que a de Marcello Mastroianni em A doce vida e Oito e meio? Da mesma forma a relação agressivamente incestuosa de Fellini com a Igreja, em vez de vir crivada de culpas e dúvidas sussurradas, é sempre mostrada com toda a pompa e bravura de uma alta missa. Nisso a Santa Madre e este seu filho malcriado se igualam; no amor narcisista pelo efeito e pelo espetáculo.
É bom lembrar que a ideia do antagonismo insolúvel entre corpo e alma é uma herança platônica e não cristã. Está implícita na doutrina da Igreja uma eventual ressurreição do corpo, se bem que velada e projetada para a Vida Eterna. A Renascença italiana não veio como uma agressão à Igreja. Foi, em grande parte, financiada por ela. E a Renascença reabilitava, em termos, o paganismo da era clássica. A Igreja no auge do seu poder homenageava o classicismo no seu auge e experimentava um pouco de saudável safadeza por procuração. No seu Satyricon, Fellini evoca a decadência da era clássica. Mas a evoca não do ponto de vista da Renascença e sim da Igreja medieval, para a qual o paganismo era um pântano sulfuroso habitado por monstros sem alma e sem reabilitação possível. Não quero cair aqui num psicologismo de almanaque, mas uma explicação plausível para esse enfoque surpreendente está nos traumas religiosos de Fellini. A sua queda do colo da Igreja, significando como significa o fim de uma fixação infantil, só pode ser vista como um processo de corrupção, de fim de inocência, de desamparo e desencanto. Do mesmo modo que Fellini usa as pompas da Igreja pelo seu poder evocativo, como uma maneira de exorcizar a sua fé e alisar suas cicatrizes, usa, no Satyricon, um paganismo imaginário, fantástico, repelente, para exorcizar seu humanismo anti-religioso. Pedir que suas imagens façam mais do que ilustrar esse infindável diálogo de Fellini consigo mesmo é pedir mais do que Fellini pode, ou quer, dar. Acho eu.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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