Sendo
o mais narcisista, Fellini é o mais italiano dos diretores
italianos. E o mais divertido. O narcisismo italiano não implica
introspecção ou exagerada auto-análise. Nem um fascínio exclusivo
com o próprio umbigo. Ao contrário, é tão expansivo e abrangente
que requer um espelho do tamanho da Itália. A paisagem italiana
emoldura as poses de seus artistas e reflete suas caretas com cândida
cumplicidade. A paisagem dispensa palavras. Assim a melhor comédia
italiana não precisa da piada verbal ou de exagero da mímica para
se realizar: basta enfatizar esta ou aquela característica nacional
até o ridículo. E a autogozação é apenas o lado mais simpático
do narcisismo. Para os diretores “sérios”, a generosidade
maternal do cenário não é menor. Lá nunca faltará a um Antonioni
uma parede enigmaticamente branca contra a qual filmar suas
angústias. Visconti não precisa ir mais longe do que o pórtico da
sua casa para descobrir uma metáfora visual adequada à decadência
que ele filma com tanta volúpia. Fora de casa eles se perdem. Sem um
cenário loquaz, evocativo e familiar que os exima de entrar em
detalhes ou recorrer às palavras, os dois quase se comprometem. Os
deuses malditos, de Visconti, é fascinante como
espetáculo, mas simplista nas suas implicações políticas e
primário como uma ópera nas suas pretensões psicológicas. Blow
Up – depois daquele beijo era um filme temático que
funcionaria em qualquer cenário, mas Zabriskie Point chega a
ser embaraçoso. Fellini não filma fora da Itália porque sabe que
um minuto longe do espelho arruinaria sua imagem.
Fellini
não se tortura com a impenetrabilidade dos objetos, com a
indiferença das coisas que cercam o drama humano, como Antonioni.
Também não tateia no cenário com a desencantada sensualidade de
eunuco de um Visconti. O que interessa a ele é a superfície dócil,
a seu serviço, a maneira como o jogo de luz e sombra contra aquela
parede romana realça o seu perfil, ou como a fotogênica solidão
desta rua provinciana evoca um seu estado de espírito na
adolescência. Fellini serve-se da sua terra e dos seus conterrâneos
com a inocente perversidade de um filho mimado. Ele próprio já
descreveu a Itália como uma “mãe” absorvente, cálida,
protetora e sufocante que inferniza a vida dos filhos, mas longe da
qual é impossível viver. E a imagem é perfeita. No resto do mundo
o Estado é uma projeção paterna: na Itália la mamma reina
absoluta. Nem o fascismo escapou da tirania maternal. O que era
Mussolini senão a personificação elevada ao absurdo do filho
mimado na sua melhor roupa de domingo, posando de machão para o
orgulho da mamma? Antonioni se refugiou dos seus carnudos
tentáculos no ascetismo e no exílio. Visconti não perde
oportunidade de lhe meter uma faca na barriga. Só Fellini a aceita,
e usa, como um filho favorito. A sua superfície, o seu encanto
visual, seus anacronismos grotescos, as suas tetas e os seus
terrores. Fellini é o melhor diretor italiano justamente porque é o
mais superficial, o mais egocêntrico, o mais posudo, o mais filho da
mãe. Certamente o que o cinema ensina, ou deveria ensinar, é que
não existe nada por trás do espelho, que qualquer busca de um
“significado” oculto nas coisas se espatifa contra sua
superfície. O cinema é a arte dos sentidos, não do intelecto. O
drama humano pode ser contado numa sucessão de poses. E isso é
ofício de narcisista. Quanto mais, melhor.
La
mamma e a Santa Madre. A identificação é inevitável. Para a
imaginação infantil a mãe é ao mesmo tempo fada e megera, o colo
farto e o domínio castrador. A Igreja também consola e castra,
embala e sufoca. A sua presença na Itália é, literalmente,
marcante. Quem escapa do seu regaço tem cicatrizes para alisar pelo
resto da vida. O herói felliniano nunca se decide entre a mulher
espiritual, angulosa, de boa leitura mas poucos quadris e
suficientemente neurótica para ser um papo inteligente, e a Outra, a
confortável Santa Madre, ou Sandra Milo, com a sua exuberância
mamilar. Não era por acaso que Anita Ekberg aparecia em A doce
vida vestida de padre estilizado.
Fellini,
como seus heróis, hesita entre a pose de intelectual maduro e seu
ninho despreocupado no seio da Igreja. Os dois impulsos se envenenam
mutuamente. O ranço religioso não permite ao intelectual ir além
de divagações juvenis estilo “se Deus não existe tudo é
permitido”, e como isso me chateia. A descrença entorta sua visão
da experiência religiosa, e o ato de fé é sempre retratado como
uma manifestação a ser lamentada da grotesca miséria humana. Quase
todos os filmes de Fellini têm cenas de furor místico, filmadas
invariavelmente con brio e ânimo vingativo. A procissão em
Estrada da vida. A visita ao santo milagroso de Cabiria e seus
amigos. As sessões com os espíritos de Julieta. A romaria ao local
da aparição em A doce vida. O que salva Fellini é que,
sendo um superficial incurável, ele se preocupa com a aparência
mais do que com a essência do que filma. Com as poses, com o
ornamento. Já houve angústia existencial mais fotogênica, mais
glamourosa, mais atraente do que a de Marcello Mastroianni em A
doce vida e Oito e meio? Da mesma forma a relação
agressivamente incestuosa de Fellini com a Igreja, em vez de vir
crivada de culpas e dúvidas sussurradas, é sempre mostrada com toda
a pompa e bravura de uma alta missa. Nisso a Santa Madre e este seu
filho malcriado se igualam; no amor narcisista pelo efeito e pelo
espetáculo.
É
bom lembrar que a ideia do antagonismo insolúvel entre corpo e alma
é uma herança platônica e não cristã. Está implícita na
doutrina da Igreja uma eventual ressurreição do corpo, se bem que
velada e projetada para a Vida Eterna. A Renascença italiana não
veio como uma agressão à Igreja. Foi, em grande parte, financiada
por ela. E a Renascença reabilitava, em termos, o paganismo da era
clássica. A Igreja no auge do seu poder homenageava o classicismo no
seu auge e experimentava um pouco de saudável safadeza por
procuração. No seu Satyricon, Fellini evoca a decadência da
era clássica. Mas a evoca não do ponto de vista da Renascença e
sim da Igreja medieval, para a qual o paganismo era um pântano
sulfuroso habitado por monstros sem alma e sem reabilitação
possível. Não quero cair aqui num psicologismo de almanaque, mas
uma explicação plausível para esse enfoque surpreendente está nos
traumas religiosos de Fellini. A sua queda do colo da Igreja,
significando como significa o fim de uma fixação infantil, só pode
ser vista como um processo de corrupção, de fim de inocência, de
desamparo e desencanto. Do mesmo modo que Fellini usa as pompas da
Igreja pelo seu poder evocativo, como uma maneira de exorcizar a sua
fé e alisar suas cicatrizes, usa, no Satyricon, um paganismo
imaginário, fantástico, repelente, para exorcizar seu humanismo
anti-religioso. Pedir que suas imagens façam mais do que ilustrar
esse infindável diálogo de Fellini consigo mesmo é pedir mais do
que Fellini pode, ou quer, dar. Acho eu.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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