domingo, 4 de agosto de 2019

A epifania humana

Não há dúvida de que o Homo sapiens é a espécie mais poderosa no mundo. O Homo sapiens também gosta de pensar que usufrui de um status moral superior e que o valor da vida humana é muito maior que a de porcos, elefantes ou lobos. Isso é menos óbvio. Será que poder implica direitos? Será que a vida humana é mais preciosa que a vida dos suínos simplesmente porque o coletivo humano é mais poderoso do que o coletivo suíno? Os Estados Unidos são muito mais poderosos do que o Afeganistão; isso implica que a vida dos americanos tem valor intrínseco maior do que a vida dos afegãos?
Na prática, a vida dos americanos é mais valorizada. Investe-se muito mais dinheiro na educação, na saúde e na segurança de um americano médio do que na vida de um afegão médio. Matar um cidadão americano gera um protesto internacional muito maior do que matar um cidadão afegão. Mas geralmente se aceita que isso não é mais do que um resultado injusto da balança de poderes geopolítica. O Afeganistão pode ter muito menos influência do que os Estados Unidos, porém a vida de uma criança nas montanhas de Tora Bora é considerada em cada detalhe tão sagrada quanto a vida de uma criança em Beverly Hills.
Em contrapartida, quando privilegiamos crias humanas em detrimento de leitões, queremos acreditar que isso reflete algo mais profundo do que uma balança de poder ecológica. Queremos acreditar que a vida humana é superior em algum aspecto fundamental. Nós Sapiens adoramos dizer a nós mesmos que nos beneficiamos de alguma qualidade mágica que não só explica nosso imenso poder como também oferece uma justificativa moral para nosso status privilegiado. Qual seria essa singular epifania humana?
A resposta monoteísta tradicional é que só os Sapiens são dotados de almas eternas. Enquanto o corpo se degenera e decompõe, a alma continua numa jornada em direção à redenção ou à danação e experimentará ou a perene alegria do paraíso ou uma eternidade de sofrimento no inferno. Como os porcos e os outros animais não têm alma, eles não fazem parte desse drama cósmico. Vivem apenas alguns anos, então morrem e desaparecem no nada. Devemos, portanto, cuidar muito mais de nossas almas humanas eternas do que de porcos efêmeros.
Não se trata de um conto de fadas de jardim de infância, mas de um mito extremamente poderoso que continua a moldar a vida de bilhões de humanos e animais no início do século XXI. A crença de que os seres humanos têm almas eternas, ao passo que animais são apenas corpos evanescentes, constitui-se no pilar central de nossos sistemas legal, político e econômico. Isso explica por que, por exemplo, é perfeitamente aceitável que humanos matem animais para se alimentar, ou mesmo só como divertimento.
No entanto, nossas descobertas científicas mais recentes contradizem completamente o mito monoteísta. Com efeito, experimentos em laboratório confirmam a acurácia de uma parte do mito: como dizem as religiões monoteístas, os animais não têm alma. Todos os cuidadosos estudos e os minuciosos exames não conseguiram descobrir nenhum traço de alma em porcos, ratos ou macacos rhesus. Mas os mesmos experimentos laboratoriais desmontam a segunda e mais importante parte do mito monoteísta — o de que os humanos têm, sim, uma alma. Cientistas submeteram o Homo sapiens a dezenas de milhares de experimentos bizarros, examinaram cada recanto de nossos corações e cada sulco em nossos cérebros. Contudo, até agora não descobriram nenhuma epifania mágica. A evidência científica de que, ao contrário dos porcos, os humanos têm alma é igual a zero.
Se isso fosse tudo, bem poderíamos alegar que os cientistas só precisam continuar a procurar. Se ainda não acharam a alma, é porque não procuraram com bastante cuidado. Entretanto, as ciências biológicas duvidam da existência da alma não só devido à inexistência de evidência, mas também porque o simples conceito de alma contradiz os princípios fundamentais da evolução. Essa contradição é responsável pelo ódio desenfreado que a teoria da evolução desencadeia nos monoteístas devotos.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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