quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Ao voltar para o emprego, Souza encontra uma novidade desagradável. O chefe, é claro, não fornece explicações. Chefes chefiam

Resolvi trabalhar. Não tomei banho, nem fiz barba. Estou suando. Sobre o fogão, um resto de sopa. Esquentei. Nunca tomei sopa de manhã, sempre é dia de se começar um hábito. Caldo de carne, tomate, macarrão de estrelinhas. Factícios. Durante anos, sopa foi nosso primeiro prato, ao jantar.
Só o macarrão de estrelinhas mudou. A antiga fábrica do bairro fechou, faz muito tempo. O velho gostava de trabalhar com trigo, os filhos se contentaram com misturas, os netos aceitaram a farinha química dos laboratórios do governo. Só não aguentaram a pressão das multi-indústrias.
Elas vieram, com pacotes plásticos atraentes, supostamente com melhores valores, proteínas, ovos. Verdade que houve imensa intoxicação na altura dos anos setenta. Os intestinos do povo não funcionaram. Formavam-se bolos alimentares endurecidos, mal digeridos, provocando cólicas terríveis.
Resultado das excessivas aplicações de produtos químicos não testados. A tecnologia vinha de fora, os técnicos nacionais estavam em fase experimental. Meses e meses até as coisas voltarem aos eixos. A imprensa foi proibida de tocar no assunto, ministros tinham interesses nas multi-indústrias alimentícias.
Eu me lembro bem dessa grande intoxicação. Ela coincidiu com nossa chegada das praias poluídas. Tivemos de voltar às pressas quando as pessoas começaram a morrer. Iam para a praia, contentes, tomavam banho de sol, mergulhavam. Saíam, se deitavam ao sol. No fim da tarde, morriam como baratas sob inseticidas.
Os prefeitos escondiam os fatos. Acusavam o governo de contribuir para a bancarrota das estâncias. Processavam os jornais. Protestavam contra as televisões. Processavam as famílias que ousavam dar declarações. Compravam todo mundo. E as pessoas desciam às praias, e morriam.
Hoje não se vai mais à praia. É triste chegar ao litoral e ver as cercas de concreto e farpado isolando as áreas. O mar estagnado, negro. Praia? Se é que se pode chamar aquela areia negra, espessa, oleosa, de praia. Nem água do mar se consegue tirar para tratamento e distribuição à população.
Construíram-se todos os tipos de filtros para torná-la potável. Inúteis. A água termina o ciclo de refinação com uma cor cinza e um cheiro enjoativo de ovo podre. Parece vingança do mar. Então construíram emissários gigantescos. Os esgotos do país fluem para o oceano dia e noite.
Duas colheres de sopa. Nada mais. Me enjoou. Tive vontade de jogá-la no tapete. Esse tapete de retalhos que Adelaide fez neuroticamente nas tardes em que ficou em casa sozinha. Mais de dez mil tardes ociosas, ela sentada na cadeira. Cortando pano, unindo e montando tapetes para a família inteira.
Quando os tapetes envelheciam e os retalhos apodreciam, ela fazia outro. Primeiro, tecendo cordinhas bem finas com os panos coloridos. Depois trançando e formando desenhos incompreensíveis, encontrados em revistas antigas. Ela arranca as páginas e guarda em pastas catalogadas.
Observando o tapete, vou encontrando restos de camisas que tinham desaparecido, lenços, gravatas, vestidos, maiôs. Tudo ali. Vendo o pano azul estampado, eu me lembro do décimo aniversário de casamento. A gravata de bolinhas foi presente de meu pai nos meus quarenta anos. E o lenço, cueca, meias.
Os tapetes esgarçavam, desbotavam. Aí, ela usava como panos de chão, até apodrecerem e serem amontoados no quartinho dos fundos, o que era usado pela empregada. Devem estar lá, um montão de panos podres. Juntos aos calendários. Por que Adelaide guarda tudo, não se desfaz de nada?
Ela dorme no sofá da sala. Ou finge dormir. Fiz todos os tipos de barulho, não se moveu. Não tem o sono tão pesado assim. Saio. O elevador parado, é infernal essa economia de energia. Desço os andares, devagar. Também, se perder o ônibus, pouco me importa. Pouco me importa, já se viu?
Apesar de tudo, cheguei ao ponto antes do S-7.58 chegar. Que S seria esse? Existem tantos nomes, siglas, números, letrinhas, desenhos, símbolos, visuais incompreensíveis, cada um designando uma seção, departamento, organização. Acho que um homem levaria mais de um ano para compreender tudo, conhecer todas.
O senhor toma outro carro, por favor?
Por que outro carro?
Ordem da companhia.
Ah, essa não. A companhia me conhece, por acaso? Vou é nesse.
Subi. Todos no ônibus olhavam mal-humorados para mim. Não reconheci ninguém do horário habitual. Alguns carecas, mais vermelhos do que nunca. Abafado no interior. Agora estavam dando fichas de circulação para os carecas? Os passageiros começaram a descer. O cobrador saiu rápido, o motorista chegou.
Por que o senhor não vai por bem?
Pago minha passagem, tenho ficha de circulação, portanto tenho o direito de andar no carro que me determinaram.
O senhor é que pensa.
O cobrador voltou acompanhado de um Civiltar. Com a rudeza normal, o Civiltar não perguntou nada. São famosos por atirar antes e não perguntar depois. Ele me agarrou. Quem é que pode mais que um Civiltar? Me atirou à calçada, como quem joga uma bolota de papel. Vai ser forte assim no inferno.
A maleta abriu, os papéis se espalharam pela calçada. Ainda sentado, traseiro ardendo, comecei a juntar. De repente, parei. Para quê? Estes papéis não me interessam. Notas, faturas, recibos, recortes de jornais, cartões de visita, cheques, bilhetes do chefe, memorandos, papéis carimbados. Parece coisa de minha mulher.
Juntar tudo isso para quê? Olhei uma vez mais os papéis pardos (só existe um tipo de Brasil, de baixa qualidade, racionadíssimo). Convivo com eles há quantos anos? Para que carrego esse arquivo de nada? Curioso, ontem na cama tentava me lembrar onde eu trabalhava, o que fazia. Deixei a maleta e os papéis ali, no chão.
Os passageiros voltaram depressa ao ônibus. Levantei-me, fiquei encostado ao ponto. Quinze minutos depois, outro carro. Só abriu a porta da frente, algumas pessoas desceram. É uma conspiração. Bati na porta de entrada, chutei. O cobrador colocou a cabeça para fora da janela, irritado.
O que é isso, companheiro? Espere o outro carro.
Decidi ir a pé. Não preciso de condução, tenho meus pés, gosto de andar. São vinte quadras, não me importa a demora. Custei a acertar o passo, depois encontrei o ritmo. À medida que me aproximava do centro, penetrava nas filas. Parava, andava. Suava em bicas ao cruzar a Boca de Distrito.
Quando entrei no escritório, passei rápido, sem cumprimentar o chefe. Nem olhei meus companheiros. Eles também nem ligaram. Sempre fui considerado homem quieto, maníaco com a limpeza das gavetas, da mesa, com a ordem dos papéis, organização na mesa. Tenho a melhor letra, os manuscritos saem de mim.
Havia um paletó estranho na cadeira. Abri a gaveta, não encontrei a minha arrumação, os lápis selecionados por cores, tamanhos, os clipes, borrachas, grampeador, carimbos. Tudo remexido. Ouvi um “com licença”, ergui os olhos. Lá estava o homem gordo, careca, uns trinta anos. Suava mais que eu.
Desculpe, esta mesa é minha.
Sua?
Me deram hoje de manhã.
Então vamos ao chefe.
Como quiser.
O que está acontecendo?
O senhor está demitido.
Tem de me explicar. Ora, se tem!
Para que saber, se já está demitido e não vai adiantar? Às vezes, é pior saber o motivo.
Eu quebro isto tudo. Quebro. Quero uma explicação, e já!
À vontade, quebre. O senhor sempre foi revoltado, seu Souza. Isso não é bom. Assim não ajuda. Não é de gente como o senhor que o Esquema precisa.
Não saio sem explicação.
Então fique aí.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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