Resolvi
trabalhar. Não tomei banho, nem fiz barba. Estou suando. Sobre o
fogão, um resto de sopa. Esquentei. Nunca tomei sopa de manhã,
sempre é dia de se começar um hábito. Caldo de carne, tomate,
macarrão de estrelinhas. Factícios. Durante anos, sopa foi nosso
primeiro prato, ao jantar.
Só
o macarrão de estrelinhas mudou. A antiga fábrica do bairro fechou,
faz muito tempo. O velho gostava de trabalhar com trigo, os filhos se
contentaram com misturas, os netos aceitaram a farinha química dos
laboratórios do governo. Só não aguentaram a pressão das
multi-indústrias.
Elas
vieram, com pacotes plásticos atraentes, supostamente com melhores
valores, proteínas, ovos. Verdade que houve imensa intoxicação na
altura dos anos setenta. Os intestinos do povo não funcionaram.
Formavam-se bolos alimentares endurecidos, mal digeridos, provocando
cólicas terríveis.
Resultado
das excessivas aplicações de produtos químicos não testados. A
tecnologia vinha de fora, os técnicos nacionais estavam em fase
experimental. Meses e meses até as coisas voltarem aos eixos. A
imprensa foi proibida de tocar no assunto, ministros tinham
interesses nas multi-indústrias alimentícias.
Eu
me lembro bem dessa grande intoxicação. Ela coincidiu com nossa
chegada das praias poluídas. Tivemos de voltar às pressas quando as
pessoas começaram a morrer. Iam para a praia, contentes, tomavam
banho de sol, mergulhavam. Saíam, se deitavam ao sol. No fim da
tarde, morriam como baratas sob inseticidas.
Os
prefeitos escondiam os fatos. Acusavam o governo de contribuir para a
bancarrota das estâncias. Processavam os jornais. Protestavam contra
as televisões. Processavam as famílias que ousavam dar declarações.
Compravam todo mundo. E as pessoas desciam às praias, e morriam.
Hoje
não se vai mais à praia. É triste chegar ao litoral e ver as
cercas de concreto e farpado isolando as áreas. O mar estagnado,
negro. Praia? Se é que se pode chamar aquela areia negra, espessa,
oleosa, de praia. Nem água do mar se consegue tirar para tratamento
e distribuição à população.
Construíram-se
todos os tipos de filtros para torná-la potável. Inúteis. A água
termina o ciclo de refinação com uma cor cinza e um cheiro
enjoativo de ovo podre. Parece vingança do mar. Então construíram
emissários gigantescos. Os esgotos do país fluem para o oceano dia
e noite.
Duas
colheres de sopa. Nada mais. Me enjoou. Tive vontade de jogá-la no
tapete. Esse tapete de retalhos que Adelaide fez neuroticamente nas
tardes em que ficou em casa sozinha. Mais de dez mil tardes ociosas,
ela sentada na cadeira. Cortando pano, unindo e montando tapetes para
a família inteira.
Quando
os tapetes envelheciam e os retalhos apodreciam, ela fazia outro.
Primeiro, tecendo cordinhas bem finas com os panos coloridos. Depois
trançando e formando desenhos incompreensíveis, encontrados em
revistas antigas. Ela arranca as páginas e guarda em pastas
catalogadas.
Observando
o tapete, vou encontrando restos de camisas que tinham desaparecido,
lenços, gravatas, vestidos, maiôs. Tudo ali. Vendo o pano azul
estampado, eu me lembro do décimo aniversário de casamento. A
gravata de bolinhas foi presente de meu pai nos meus quarenta anos. E
o lenço, cueca, meias.
Os
tapetes esgarçavam, desbotavam. Aí, ela usava como panos de chão,
até apodrecerem e serem amontoados no quartinho dos fundos, o que
era usado pela empregada. Devem estar lá, um montão de panos
podres. Juntos aos calendários. Por que Adelaide guarda tudo, não
se desfaz de nada?
Ela
dorme no sofá da sala. Ou finge dormir. Fiz todos os tipos de
barulho, não se moveu. Não tem o sono tão pesado assim. Saio. O
elevador parado, é infernal essa economia de energia. Desço os
andares, devagar. Também, se perder o ônibus, pouco me importa.
Pouco me importa, já se viu?
Apesar
de tudo, cheguei ao ponto antes do S-7.58 chegar. Que S seria esse?
Existem tantos nomes, siglas, números, letrinhas, desenhos,
símbolos, visuais incompreensíveis, cada um designando uma seção,
departamento, organização. Acho que um homem levaria mais de um ano
para compreender tudo, conhecer todas.
– O
senhor toma outro carro, por favor?
– Por
que outro carro?
– Ordem
da companhia.
– Ah,
essa não. A companhia me conhece, por acaso? Vou é nesse.
Subi.
Todos no ônibus olhavam mal-humorados para mim. Não reconheci
ninguém do horário habitual. Alguns carecas, mais vermelhos do que
nunca. Abafado no interior. Agora estavam dando fichas de circulação
para os carecas? Os passageiros começaram a descer. O cobrador saiu
rápido, o motorista chegou.
– Por
que o senhor não vai por bem?
– Pago
minha passagem, tenho ficha de circulação, portanto tenho o direito
de andar no carro que me determinaram.
– O
senhor é que pensa.
O
cobrador voltou acompanhado de um Civiltar. Com a rudeza normal, o
Civiltar não perguntou nada. São famosos por atirar antes e não
perguntar depois. Ele me agarrou. Quem é que pode mais que um
Civiltar? Me atirou à calçada, como quem joga uma bolota de papel.
Vai ser forte assim no inferno.
A
maleta abriu, os papéis se espalharam pela calçada. Ainda sentado,
traseiro ardendo, comecei a juntar. De repente, parei. Para quê?
Estes papéis não me interessam. Notas, faturas, recibos, recortes
de jornais, cartões de visita, cheques, bilhetes do chefe,
memorandos, papéis carimbados. Parece coisa de minha mulher.
Juntar
tudo isso para quê? Olhei uma vez mais os papéis pardos (só existe
um tipo de Brasil, de baixa qualidade, racionadíssimo). Convivo com
eles há quantos anos? Para que carrego esse arquivo de nada?
Curioso, ontem na cama tentava me lembrar onde eu trabalhava, o que
fazia. Deixei a maleta e os papéis ali, no chão.
Os
passageiros voltaram depressa ao ônibus. Levantei-me, fiquei
encostado ao ponto. Quinze minutos depois, outro carro. Só abriu a
porta da frente, algumas pessoas desceram. É uma conspiração. Bati
na porta de entrada, chutei. O cobrador colocou a cabeça para fora
da janela, irritado.
– O
que é isso, companheiro? Espere o outro carro.
Decidi
ir a pé. Não preciso de condução, tenho meus pés, gosto de
andar. São vinte quadras, não me importa a demora. Custei a acertar
o passo, depois encontrei o ritmo. À medida que me aproximava do
centro, penetrava nas filas. Parava, andava. Suava em bicas ao cruzar
a Boca de Distrito.
Quando
entrei no escritório, passei rápido, sem cumprimentar o chefe. Nem
olhei meus companheiros. Eles também nem ligaram. Sempre fui
considerado homem quieto, maníaco com a limpeza das gavetas, da
mesa, com a ordem dos papéis, organização na mesa. Tenho a melhor
letra, os manuscritos saem de mim.
Havia
um paletó estranho na cadeira. Abri a gaveta, não encontrei a minha
arrumação, os lápis selecionados por cores, tamanhos, os clipes,
borrachas, grampeador, carimbos. Tudo remexido. Ouvi um “com
licença”, ergui os olhos. Lá estava o homem gordo, careca, uns
trinta anos. Suava mais que eu.
– Desculpe,
esta mesa é minha.
– Sua?
– Me
deram hoje de manhã.
– Então
vamos ao chefe.
– Como
quiser.
– O
que está acontecendo?
– O
senhor está demitido.
– Tem
de me explicar. Ora, se tem!
– Para
que saber, se já está demitido e não vai adiantar? Às vezes, é
pior saber o motivo.
– Eu
quebro isto tudo. Quebro. Quero uma explicação, e já!
– À
vontade, quebre. O senhor sempre foi revoltado, seu Souza. Isso não
é bom. Assim não ajuda. Não é de gente como o senhor que o
Esquema precisa.
– Não
saio sem explicação.
– Então
fique aí.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país
nenhum
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