domingo, 18 de agosto de 2019

A equação da vida

Os cientistas não sabem como um conjunto de sinais elétricos cerebrais cria experiências subjetivas. Ainda mais crucial, eles não sabem, em termos evolutivos, qual poderia ser o benefício desse fenômeno. É a maior lacuna que nos separa de nosso entendimento da vida. Humanos têm pés porque durante milhões de gerações os pés permitiram que nossos antepassados caçassem coelhos e fugissem dos leões. Os humanos têm olhos porque por incontáveis milênios os olhos permitiram aos que nos antecederam ver para onde o coelho estava indo e de onde o leão estava vindo. Mas por que os humanos têm experiências subjetivas de fome e de medo?
Não muito tempo atrás os biólogos deram uma resposta muito simples. As experiências subjetivas são essenciais à nossa sobrevivência porque, se não sentíssemos fome ou medo, não nos preocuparíamos em caçar coelhos ou fugir de leões. Ao ver um leão, por que um homem foge? Bem, ele se assustou, por isso foge. As experiências subjetivas explicam as ações humanas. Mas hoje os cientistas oferecem uma explicação muito mais detalhada. Quando um homem vê um leão, sinais elétricos se movimentam do olho para o cérebro. Os sinais que entram estimulam certos neurônios, que reagem disparando mais sinais. Estes estimulam outros neurônios adiante, que por sua vez disparam seus sinais. Se um número suficiente dos neurônios corretos dispararem a um ritmo rápido o bastante, comandos são enviados às glândulas suprarrenais para que inundem o corpo com adrenalina, o coração é instruído a bater mais rápido, enquanto neurônios no centro motor enviam sinais para os músculos da perna, os quais começam a se distender e contrair. Então o homem sai correndo para fugir do leão.
Ironicamente, quanto melhor mapeamos esse processo, mais difícil fica explicar os sentimentos conscientes. Quanto melhor entendemos o cérebro, mais redundante parece ser a mente. Se o sistema inteiro trabalha com sinais elétricos que passam daqui para ali, por que também temos de sentir medo? Se uma cadeia de reações eletroquímicas percorre todo o caminho a partir das células do olho até a movimentação dos músculos da perna, para que acrescentar experiências subjetivas a ela? O que fazem tais experiências? Incontáveis peças de dominó podem derrubar uma à outra sem a necessidade de experiências subjetivas. Por que os neurônios precisam de sentimentos para poder estimular um ao outro, ou para poder informar à glândula suprarrenal que comece a bombear? Na verdade, 99% das atividades do corpo, inclusive os movimentos musculares e as secreções hormonais, ocorrem sem a necessidade de sentimentos conscientes. Então por que os neurônios, os músculos e as glândulas precisam desses sentimentos no 1% restante dos casos?
Pode-se argumentar que precisamos de uma mente porque é nela que se armazenam memórias, se fazem planos e onde autonomamente se desencadeiam imagens e ideias completamente novas. A mente não se limita a reagir a estímulos externos. Por exemplo, quando um homem vê um leão, não reage automaticamente à imagem do predador. Ele lembra que no ano anterior um leão devorou sua tia. Ele imagina como se sentiria se um leão o fizesse em pedaços. Ele visualiza a sina de seus filhos que ficarão órfãos. É por isso que foge. Na verdade, muitas reações em cadeia começam por iniciativa da própria mente e não por algum estímulo externo imediato. Assim, a memória de um ataque de leão ocorrido no passado pode surgir espontaneamente na mente de um homem, fazendo-o pensar no perigo que aqueles animais representam. Ele pode então reunir todas as pessoas da tribo para juntos discutirem novos métodos de afugentar os leões.
Mas espere um pouco. Que memórias, ideias e pensamentos são esses? Onde eles existem? Segundo teorias biológicas atuais, nossas memórias, nossas ideias e nossos pensamentos não existem em algum campo superior e imaterial. Em vez disso, são também avalanches de sinais elétricos disparados por bilhões de neurônios. Daí que, até mesmo quando concebemos algo relacionado a memórias, ideias ou pensamentos, ainda somos deixados com uma série de reações eletroquímicas que passam por bilhões de neurônios e acabam na ativação de glândulas suprarrenais e dos músculos da perna.
Será que existe um único passo nessa longa e sinuosa jornada em que, entre a ação de um neurônio e a reação do próximo, a mente intervém e decide se o segundo neurônio deve disparar ou não? Será que existe alguma movimentação material, mesmo que de um único elétron, causada pela experiência subjetiva de medo, e não pela movimentação anterior de alguma outra partícula? Se não existe tal movimentação — e se todo elétron se movimenta porque outro elétron se movimentou antes —, por que precisamos experimentar o medo? Não há uma pista quanto a isso.
Filósofos resumiram esse enigma numa pergunta capciosa: o que acontece na mente que não acontece no cérebro? Se nada acontece na mente a não ser o que acontece em nossa rede maciça de neurônios, para que então precisamos da mente? Se algo realmente acontece na mente acima e além do que acontece na rede neural, onde é que isso acontece? Suponha que eu lhe pergunte o que Homer Simpson acha do escândalo de Bill Clinton e Monica Lewinsky. Você provavelmente nunca pensou nisso antes, por isso sua mente precisa fundir duas lembranças antes não inter-relacionadas, talvez evocando uma imagem de Homer tomando cerveja enquanto assiste ao presidente Clinton pronunciar sua fala: “Não tive relações sexuais com aquela mulher”. Onde ocorre essa fusão?
Alguns neurocientistas alegam que isso acontece na “área de trabalho global” criada pela interação de muitos neurônios. Porém, a expressão “área de trabalho” é apenas uma metáfora. Qual é a realidade por trás da metáfora? Onde realmente se encontram e se fundem as diferentes peças de informação? De acordo com teorias atuais, isso não ocorre em alguma quinta dimensão platônica. Isso ocorre, digamos, onde dois neurônios antes desconectados começam subitamente a disparar sinais um para o outro. Forma-se uma nova sinapse entre o neurônio Bill Clinton e o neurônio Homer Simpson. Mas, se é assim, por que precisamos da experiência consciente da memória acima e além do evento físico da conexão entre os dois neurônios?
Podemos enunciar a mesma charada em termos matemáticos. O dogma atualmente em vigor sustenta que organismos são algoritmos e que algoritmos podem ser representados por meio de fórmulas matemáticas. Podem-se usar números e símbolos matemáticos para escrever as etapas que a máquina de venda automática cumpre para preparar um copo de chá, bem como as etapas que um cérebro cumpre quando se assusta com a aproximação de um leão. Se é assim, e se as experiências conscientes desempenham alguma função importante, elas têm de ter uma representação matemática, pois são parte essencial do algoritmo. Quando escrevemos o algoritmo do medo e decompomos “medo” em uma série de cálculos precisos, deveríamos ser capazes de apontar: “Aqui, passo número 93 no processamento do cálculo — esta é a experiência subjetiva do medo!”. Haverá, contudo, algum algoritmo no imenso reino da matemática que contenha uma experiência subjetiva? Até o momento não temos notícia de tal algoritmo. Não obstante o vasto conhecimento que adquirimos nos campos da matemática e da ciência da computação, nenhum dos sistemas de processamento de dados que criamos precisa de experiências subjetivas para poder funcionar, e nenhum sente dor, prazer, raiva ou amor.
Podemos enunciar a mesma charada em termos matemáticos. O dogma atualmente em vigor sustenta que organismos são algoritmos e que algoritmos podem ser representados por meio de fórmulas matemáticas. Podem-se usar números e símbolos matemáticos para escrever as etapas que a máquina de venda automática cumpre para preparar um copo de chá, bem como as etapas que um cérebro cumpre quando se assusta com a aproximação de um leão. Se é assim, e se as experiências conscientes desempenham alguma função importante, elas têm de ter uma representação matemática, pois são parte essencial do algoritmo. Quando escrevemos o algoritmo do medo e decompomos “medo” em uma série de cálculos precisos, deveríamos ser capazes de apontar: “Aqui, passo número 93 no processamento do cálculo — esta é a experiência subjetiva do medo!”. Haverá, contudo, algum algoritmo no imenso reino da matemática que contenha uma experiência subjetiva? Até o momento não temos notícia de tal algoritmo. Não obstante o vasto conhecimento que adquirimos nos campos da matemática e da ciência da computação, nenhum dos sistemas de processamento de dados que criamos precisa de experiências subjetivas para poder funcionar, e nenhum sente dor, prazer, raiva ou amor. mesmo suas ações e decisões e às vezes também comunicá-las a outros animais. Quando tenta criar um modelo das próprias decisões, o cérebro é apanhado numa digressão infinita, e abracadabra! Para sair desse ciclo, a consciência emerge.
Cinquenta anos atrás isso poderia parecer plausível, mas não em 2016. Várias corporações, como Google e Tesla, estão desenvolvendo e fabricando automóveis autônomos que já trafegam em nossas vias. Os algoritmos que controlam o carro autônomo fazem milhões de cálculos que levam em conta outros carros, pedestres, semáforos e buracos no asfalto. Os carros autônomos conseguem parar em sinais vermelhos, ultrapassar obstáculos e manter uma distância segura de outros veículos — sem sentir medo algum. O carro também tem de levar em conta a si mesmo e comunicar seus planos e desejos aos veículos que o circundam porque, se ele decidiu dobrar à direita, essa escolha vai ter impacto no comportamento dos outros. O carro faz tudo isso sem nenhum problema — sem tampouco nenhuma consciência. O carro autônomo não é especial. Muitos outros programas de computador dão aval às ações que executam, mas nenhum deles desenvolveu uma consciência, e nenhum deles sente ou deseja o que quer que seja.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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