Os
cientistas não sabem como um conjunto de sinais elétricos cerebrais
cria experiências subjetivas. Ainda mais crucial, eles não sabem,
em termos evolutivos, qual poderia ser o benefício desse fenômeno.
É a maior lacuna que nos separa de nosso entendimento da vida.
Humanos têm pés porque durante milhões de gerações os pés
permitiram que nossos antepassados caçassem coelhos e fugissem dos
leões. Os humanos têm olhos porque por incontáveis milênios os
olhos permitiram aos que nos antecederam ver para onde o coelho
estava indo e de onde o leão estava vindo. Mas por que os humanos
têm experiências subjetivas de fome e de medo?
Não
muito tempo atrás os biólogos deram uma resposta muito simples. As
experiências subjetivas são essenciais à nossa sobrevivência
porque, se não sentíssemos fome ou medo, não nos preocuparíamos
em caçar coelhos ou fugir de leões. Ao ver um leão, por que um
homem foge? Bem, ele se assustou, por isso foge. As experiências
subjetivas explicam as ações humanas. Mas hoje os cientistas
oferecem uma explicação muito mais detalhada. Quando um homem vê
um leão, sinais elétricos se movimentam do olho para o cérebro. Os
sinais que entram estimulam certos neurônios, que reagem disparando
mais sinais. Estes estimulam outros neurônios adiante, que por sua
vez disparam seus sinais. Se um número suficiente dos neurônios
corretos dispararem a um ritmo rápido o bastante, comandos são
enviados às glândulas suprarrenais para que inundem o corpo com
adrenalina, o coração é instruído a bater mais rápido, enquanto
neurônios no centro motor enviam sinais para os músculos da perna,
os quais começam a se distender e contrair. Então o homem sai
correndo para fugir do leão.
Ironicamente,
quanto melhor mapeamos esse processo, mais difícil fica
explicar os sentimentos conscientes. Quanto melhor entendemos o
cérebro, mais redundante parece ser a mente. Se o sistema inteiro
trabalha com sinais elétricos que passam daqui para ali, por que
também temos de sentir medo? Se uma cadeia de reações
eletroquímicas percorre todo o caminho a partir das células do olho
até a movimentação dos músculos da perna, para que acrescentar
experiências subjetivas a ela? O que fazem tais experiências?
Incontáveis peças de dominó podem derrubar uma à outra sem a
necessidade de experiências subjetivas. Por que os neurônios
precisam de sentimentos para poder estimular um ao outro, ou para
poder informar à glândula suprarrenal que comece a bombear? Na
verdade, 99% das atividades do corpo, inclusive os movimentos
musculares e as secreções hormonais, ocorrem sem a necessidade de
sentimentos conscientes. Então por que os neurônios, os músculos e
as glândulas precisam desses sentimentos no 1% restante dos casos?
Pode-se
argumentar que precisamos de uma mente porque é nela que se
armazenam memórias, se fazem planos e onde autonomamente se
desencadeiam imagens e ideias completamente novas. A mente não se
limita a reagir a estímulos externos. Por exemplo, quando um homem
vê um leão, não reage automaticamente à imagem do predador. Ele
lembra que no ano anterior um leão devorou sua tia. Ele imagina como
se sentiria se um leão o fizesse em pedaços. Ele visualiza a sina
de seus filhos que ficarão órfãos. É por isso que foge. Na
verdade, muitas reações em cadeia começam por iniciativa da
própria mente e não por algum estímulo externo imediato. Assim, a
memória de um ataque de leão ocorrido no passado pode surgir
espontaneamente na mente de um homem, fazendo-o pensar no perigo que
aqueles animais representam. Ele pode então reunir todas as pessoas
da tribo para juntos discutirem novos métodos de afugentar os leões.
Mas
espere um pouco. Que memórias, ideias e pensamentos são esses? Onde
eles existem? Segundo teorias biológicas atuais, nossas memórias,
nossas ideias e nossos pensamentos não existem em algum campo
superior e imaterial. Em vez disso, são também avalanches de sinais
elétricos disparados por bilhões de neurônios. Daí que, até
mesmo quando concebemos algo relacionado a memórias, ideias ou
pensamentos, ainda somos deixados com uma série de reações
eletroquímicas que passam por bilhões de neurônios e acabam na
ativação de glândulas suprarrenais e dos músculos da perna.
Será
que existe um único passo nessa longa e sinuosa jornada em que,
entre a ação de um neurônio e a reação do próximo, a mente
intervém e decide se o segundo neurônio deve disparar ou não? Será
que existe alguma movimentação material, mesmo que de um único
elétron, causada pela experiência subjetiva de medo, e não pela
movimentação anterior de alguma outra partícula? Se não existe
tal movimentação — e se todo elétron se movimenta porque outro
elétron se movimentou antes —, por que precisamos experimentar o
medo? Não há uma pista quanto a isso.
Filósofos
resumiram esse enigma numa pergunta capciosa: o que acontece na mente
que não acontece no cérebro? Se nada acontece na mente a não ser o
que acontece em nossa rede maciça de neurônios, para que então
precisamos da mente? Se algo realmente acontece na mente acima e além
do que acontece na rede neural, onde é que isso acontece? Suponha
que eu lhe pergunte o que Homer Simpson acha do escândalo de Bill
Clinton e Monica Lewinsky. Você provavelmente nunca pensou nisso
antes, por isso sua mente precisa fundir duas lembranças antes não
inter-relacionadas, talvez evocando uma imagem de Homer tomando
cerveja enquanto assiste ao presidente Clinton pronunciar sua fala:
“Não tive relações sexuais com aquela mulher”. Onde ocorre
essa fusão?
Alguns
neurocientistas alegam que isso acontece na “área de trabalho
global” criada pela interação de muitos neurônios. Porém, a
expressão “área de trabalho” é apenas uma metáfora. Qual é a
realidade por trás da metáfora? Onde realmente se encontram e se
fundem as diferentes peças de informação? De acordo com teorias
atuais, isso não ocorre em alguma quinta dimensão platônica. Isso
ocorre, digamos, onde dois neurônios antes desconectados começam
subitamente a disparar sinais um para o outro. Forma-se uma nova
sinapse entre o neurônio Bill Clinton e o neurônio Homer Simpson.
Mas, se é assim, por que precisamos da experiência consciente da
memória acima e além do evento físico da conexão entre os dois
neurônios?
Podemos
enunciar a mesma charada em termos matemáticos. O dogma atualmente
em vigor sustenta que organismos são algoritmos e que algoritmos
podem ser representados por meio de fórmulas matemáticas. Podem-se
usar números e símbolos matemáticos para escrever as etapas que a
máquina de venda automática cumpre para preparar um copo de chá,
bem como as etapas que um cérebro cumpre quando se assusta com a
aproximação de um leão. Se é assim, e se as experiências
conscientes desempenham alguma função importante, elas têm de ter
uma representação matemática, pois são parte essencial do
algoritmo. Quando escrevemos o algoritmo do medo e decompomos “medo”
em uma série de cálculos precisos, deveríamos ser capazes de
apontar: “Aqui, passo número 93 no processamento do cálculo —
esta é a experiência subjetiva do medo!”. Haverá, contudo, algum
algoritmo no imenso reino da matemática que contenha uma experiência
subjetiva? Até o momento não temos notícia de tal algoritmo. Não
obstante o vasto conhecimento que adquirimos nos campos da matemática
e da ciência da computação, nenhum dos sistemas de processamento
de dados que criamos precisa de experiências subjetivas para poder
funcionar, e nenhum sente dor, prazer, raiva ou amor.
Podemos
enunciar a mesma charada em termos matemáticos. O dogma atualmente
em vigor sustenta que organismos são algoritmos e que algoritmos
podem ser representados por meio de fórmulas matemáticas. Podem-se
usar números e símbolos matemáticos para escrever as etapas que a
máquina de venda automática cumpre para preparar um copo de chá,
bem como as etapas que um cérebro cumpre quando se assusta com a
aproximação de um leão. Se é assim, e se as experiências
conscientes desempenham alguma função importante, elas têm de ter
uma representação matemática, pois são parte essencial do
algoritmo. Quando escrevemos o algoritmo do medo e decompomos “medo”
em uma série de cálculos precisos, deveríamos ser capazes de
apontar: “Aqui, passo número 93 no processamento do cálculo —
esta é a experiência subjetiva do medo!”. Haverá, contudo, algum
algoritmo no imenso reino da matemática que contenha uma experiência
subjetiva? Até o momento não temos notícia de tal algoritmo. Não
obstante o vasto conhecimento que adquirimos nos campos da matemática
e da ciência da computação, nenhum dos sistemas de processamento
de dados que criamos precisa de experiências subjetivas para poder
funcionar, e nenhum sente dor, prazer, raiva ou amor. mesmo suas
ações e decisões e às vezes também comunicá-las a outros
animais. Quando tenta criar um modelo das próprias decisões, o
cérebro é apanhado numa digressão infinita, e abracadabra! Para
sair desse ciclo, a consciência emerge.
Cinquenta
anos atrás isso poderia parecer plausível, mas não em 2016. Várias
corporações, como Google e Tesla, estão desenvolvendo e fabricando
automóveis autônomos que já trafegam em nossas vias. Os algoritmos
que controlam o carro autônomo fazem milhões de cálculos que levam
em conta outros carros, pedestres, semáforos e buracos no asfalto.
Os carros autônomos conseguem parar em sinais vermelhos, ultrapassar
obstáculos e manter uma distância segura de outros veículos —
sem sentir medo algum. O carro também tem de levar em conta a si
mesmo e comunicar seus planos e desejos aos veículos que o circundam
porque, se ele decidiu dobrar à direita, essa escolha vai ter
impacto no comportamento dos outros. O carro faz tudo isso sem nenhum
problema — sem tampouco nenhuma consciência. O carro autônomo não
é especial. Muitos outros programas de computador dão aval às
ações que executam, mas nenhum deles desenvolveu uma consciência,
e nenhum deles sente ou deseja o que quer que seja.
Yuval
Noah Harari,
in
Homo Deus: Uma breve
história do amanhã
Nenhum comentário:
Postar um comentário