A
Bíblia, com sua crença na singularidade humana, foi um dos
subprodutos da Revolução Agrícola, que deu início a uma nova fase
das relações entre humanos e animais. O advento da agricultura
produziu novas ondas de extinção em massa, mas, o que é mais
importante, criou uma forma completamente inédita de vida na Terra:
a domesticação de animais. Inicialmente esse desenvolvimento foi de
pouca importância, já que os humanos só conseguiram domesticar
menos de vinte espécies de mamíferos e aves, em comparação com os
inúmeros milhares de espécies que continuaram “selvagens”.
Contudo, com o passar dos séculos, essa nova forma de vida tornou-se
predominante. Hoje, mais de 90% de todos os animais de grande porte
estão domesticados.
Lamentavelmente,
as espécies domesticadas pagaram seu incomparável sucesso coletivo
com um sofrimento individual sem precedente. Embora o reino animal
tenha conhecido muitos tipos de dor e sofrimento durante milhões de
anos, a Revolução Agrícola gerou formas de sofrimento
completamente novas, que só pioraram com o tempo.
Para
um observador casual, pode parecer que os animais domesticados estão
em uma condição muito melhor do que a de seus primos e ancestrais
selvagens. Porcos selvagens passam os dias à procura de comida, água
e proteção e são constantemente ameaçados por leões, parasitas e
inundações. Porcos domesticados, em oposição, usufruem de comida,
água proteção providas pelos humanos, que também tratam suas
doenças e os protegem contra predadores e calamidades naturais.
Verdade, a maior parte dos porcos cedo ou tarde vai parar no
matadouro. Mas será que isso torna sua sina pior, seja no que for,
do que a dos porcos selvagens? É melhor ser devorado por um leão do
que ser abatido por um homem? Os dentes do crocodilo são menos
mortais que as lâminas de metal?
O
que torna a sina dos animais de fazenda domesticados particularmente
difícil não é exatamente o modo como eles morrem, mas, acima de
tudo, o modo como eles vivem. Dois fatores opostos moldam as
condições de vida desses animais desde os tempos antigos até hoje:
os desejos dos humanos e as necessidades dos animais. Assim, os
humanos criam porcos para obter carne, mas, se quiserem ter um
suprimento contínuo de carne, precisam garantir a sobrevivência no
longo prazo e a reprodução dos animais. Teoricamente isso deveria
protegê-los de formas extremas de crueldade. Se um agricultor não
cuidar bem de seus porcos, eles morrerão sem procriar, e o
agricultor passará fome.
Infelizmente,
os humanos podem causar grande sofrimento aos animais de fazenda de
várias maneiras, mesmo quando asseguram sua sobrevivência e sua
reprodução. A raiz do problema é que os animais domesticados
herdaram de seus antepassados selvagens muitas necessidades físicas,
emocionais e sociais que seriam supérfluas nas fazendas dos humanos.
Os agricultores, rotineiramente, ignoram essas necessidades sem
sofrer por isso nenhuma punição no âmbito econômico. Eles prendem
os animais em gaiolas minúsculas, mutilam seus chifres e suas
caudas, separam mães de crias e seletivamente criam monstruosidades.
Os animais sofrem imensamente, embora continuem a viver e a se
multiplicar.
Isso
não contradiz os princípios mais básicos da seleção natural? A
teoria da evolução sustenta que todos os instintos, impulsos e
emoções evoluíram no interesse único da sobrevivência e da
reprodução. Assim, a reprodução continuada de animais de fazenda
não demonstraria que suas necessidades reais foram contempladas?
Como um porco pode ter uma “necessidade” que na verdade não é
necessária à sua sobrevivência e à sua reprodução?
É
verdade que todos os instintos, impulsos e emoções evoluíram a fim
de se adaptar às pressões evolutivas para a sobrevivência e a
reprodução. No entanto, se e quando essas pressões desaparecerem
subitamente, os instintos, impulsos e emoções que elas configuraram
não desaparecerão com elas. Ao menos não instantaneamente. Mesmo
que não forem mais instrumentais para a sobrevivência e a
reprodução, continuam a moldar as experiências subjetivas do
animal. Para os animais, e também para os humanos, a agricultura
modificou as pressões de seleção quase da noite para o dia, sem
contudo alterar seus impulsos físicos, emocionais e sociais. É
claro que a evolução não fica estacionária, por isso continuou a
modificar humanos e animais nos 12 mil anos transcorridos desde o
advento da agricultura. Por exemplo, os humanos na Europa e na Ásia
Ocidental desenvolveram a capacidade de digerir leite de vaca,
enquanto as vacas perdiam seu medo dos humanos, e hoje produzem muito
mais leite do que seus antepassados selvagens. Mas essas mudanças
são superficiais. As profundas estruturas sensoriais e emocionais de
vacas, porcos e humanos não mudaram muito desde a Idade da Pedra.
Por
que os humanos modernos gostam tanto de doces? Não porque no início
do século XXI tenhamos de nos empanturrar de sorvete e de chocolate
para poder sobreviver, e sim porque, quando nossos antepassados na
Idade da Pedra deparavam com frutas doces e mel, o mais sensato a
fazer era comer o quanto pudessem e o mais rapidamente possível. Por
que os jovens dirigem com imprudência, envolvem-se em discussões
violentas, e hackeiam sites confidenciais na internet? Porque estão
seguindo antigas imposições genéticas que podem ser inúteis e até
contraproducentes na atualidade, mas que faziam sentido em termos
evolucionários 70 mil anos atrás. Um jovem caçador que arriscava
sua vida caçando um mamute ofuscava todos os seus competidores e
obtinha a mão da beldade local; hoje estamos impregnados de seus
genes viris.
Exatamente
a mesma lógica evolutiva modela a vida de porcos, porcas e leitões
em fazendas controladas por humanos. Para poder sobreviver e se
reproduzir em ambiente selvagem, javalis precisavam percorrer vastos
territórios, familiarizar-se com seu meio ambiente e acautelar-se
contra armadilhas e predadores. Além do mais, tinham de comunicar-se
e cooperar com seus camaradas da mesma espécie, formando grupos
complexos dominados por matriarcas velhas e experientes.
Consequentemente, as pressões evolutivas criaram javalis selvagens —
e javalis fêmeas ainda mais selvagens —, animais sumamente
inteligentes, caracterizados por uma curiosidade vívida e fortes
impulsos para socializar, brincar, vagar e explorar o entorno. Uma
porca que nascesse de alguma mutação rara que a fizesse indiferente
a seu meio ambiente ou a outros porcos-do-mato teria pouca
probabilidade de sobreviver ou se reproduzir.
Os
descendentes dos javalis — os porcos domesticados — herdaram sua
inteligência, sua curiosidade e suas aptidões sociais. Assim como
os javalis, os porcos domesticados se comunicam usando uma rica
variedade de sinais vocais e olfativos: porcas mães reconhecem o
grunhido singular de seus leitões, e leitões com dois dias de idade
já diferenciam os chamados de sua mãe do de outras porcas. O
professor Stanley Curtis, da Universidade Estadual da Pensilvânia,
treinou dois porcos — chamados Hamlet e Omelete — para manejar
com o focinho um controle especial. Ele descobriu que os porcos
rapidamente já competiam com primatas no processo de aprender e
jogar jogos simples de computador.
Hoje
em dia, a maioria das porcas em fazendas industriais não joga jogos
de computador. Durante a gestação, ficam trancadas por seus
senhores humanos em minúsculos cercados de dois metros por sessenta
centímetros. Esses engradados, com piso de concreto e barras de
metal, mal permitem que as porcas prenhes se virem ou durmam deitadas
de lado, muito menos que caminhem. Depois de três meses e meio
nessas condições, elas são levadas para cercados um pouco mais
largos, onde os filhotes nascem e são alimentados. Embora devessem
mamar durante dez a vinte semanas, nas fazendas industriais os
leitões são desmamados à força depois de quatro semanas,
separados de suas mães e enviados para a engorda e o abate. A mãe é
imediatamente inseminada e devolvida ao cercado de gestação para
dar início a mais um ciclo. Uma porca típica passaria por cinco a
dez ciclos antes de ser ela mesma abatida. Em anos recentes, o uso
desses engradados foi restringido na União Europeia e em alguns
estados dos Estados Unidos, mas ainda são utilizados em muitos
países, e dezenas de milhões de porcas reprodutoras passam quase
toda sua vida dentro deles.
Os
fazendeiros humanos cuidam de tudo de que a porca necessita para
poder sobreviver e reproduzir. Ela recebe comida suficiente, é
vacinada, protegida dos elementos e inseminada artificialmente. De
uma perspectiva objetiva, a porca não precisa mais explorar o
entorno, socializar com outros porcos, apegar-se a seus filhotes, nem
mesmo caminhar. Entretanto, de uma perspectiva subjetiva, a porca
ainda sente fortes impulsos para realizar todas essas ações e, se
eles não forem satisfeitos, o animal sofre imensamente. Porcas
trancadas em cercados de gestação costumam demonstrar frustração
aguda, alternada com extremo desespero.
Esta
é a lição básica da psicologia evolutiva: uma necessidade moldada
há milhares de gerações continua a ser sentida subjetivamente
mesmo se não for mais necessária na atualidade para a sobrevivência
e a reprodução. Tragicamente, a Revolução Agrícola conferiu aos
humanos o poder de assegurar a sobrevivência e a reprodução de
animais domesticados enquanto ignora suas necessidades subjetivas.
Yuval
Noah Harari,
in
Homo Deus: Uma breve
história do amanhã
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