sexta-feira, 5 de julho de 2019

Necessidades ancestrais

A Bíblia, com sua crença na singularidade humana, foi um dos subprodutos da Revolução Agrícola, que deu início a uma nova fase das relações entre humanos e animais. O advento da agricultura produziu novas ondas de extinção em massa, mas, o que é mais importante, criou uma forma completamente inédita de vida na Terra: a domesticação de animais. Inicialmente esse desenvolvimento foi de pouca importância, já que os humanos só conseguiram domesticar menos de vinte espécies de mamíferos e aves, em comparação com os inúmeros milhares de espécies que continuaram “selvagens”. Contudo, com o passar dos séculos, essa nova forma de vida tornou-se predominante. Hoje, mais de 90% de todos os animais de grande porte estão domesticados.
Lamentavelmente, as espécies domesticadas pagaram seu incomparável sucesso coletivo com um sofrimento individual sem precedente. Embora o reino animal tenha conhecido muitos tipos de dor e sofrimento durante milhões de anos, a Revolução Agrícola gerou formas de sofrimento completamente novas, que só pioraram com o tempo.
Para um observador casual, pode parecer que os animais domesticados estão em uma condição muito melhor do que a de seus primos e ancestrais selvagens. Porcos selvagens passam os dias à procura de comida, água e proteção e são constantemente ameaçados por leões, parasitas e inundações. Porcos domesticados, em oposição, usufruem de comida, água proteção providas pelos humanos, que também tratam suas doenças e os protegem contra predadores e calamidades naturais. Verdade, a maior parte dos porcos cedo ou tarde vai parar no matadouro. Mas será que isso torna sua sina pior, seja no que for, do que a dos porcos selvagens? É melhor ser devorado por um leão do que ser abatido por um homem? Os dentes do crocodilo são menos mortais que as lâminas de metal?
O que torna a sina dos animais de fazenda domesticados particularmente difícil não é exatamente o modo como eles morrem, mas, acima de tudo, o modo como eles vivem. Dois fatores opostos moldam as condições de vida desses animais desde os tempos antigos até hoje: os desejos dos humanos e as necessidades dos animais. Assim, os humanos criam porcos para obter carne, mas, se quiserem ter um suprimento contínuo de carne, precisam garantir a sobrevivência no longo prazo e a reprodução dos animais. Teoricamente isso deveria protegê-los de formas extremas de crueldade. Se um agricultor não cuidar bem de seus porcos, eles morrerão sem procriar, e o agricultor passará fome.
Infelizmente, os humanos podem causar grande sofrimento aos animais de fazenda de várias maneiras, mesmo quando asseguram sua sobrevivência e sua reprodução. A raiz do problema é que os animais domesticados herdaram de seus antepassados selvagens muitas necessidades físicas, emocionais e sociais que seriam supérfluas nas fazendas dos humanos. Os agricultores, rotineiramente, ignoram essas necessidades sem sofrer por isso nenhuma punição no âmbito econômico. Eles prendem os animais em gaiolas minúsculas, mutilam seus chifres e suas caudas, separam mães de crias e seletivamente criam monstruosidades. Os animais sofrem imensamente, embora continuem a viver e a se multiplicar.
Isso não contradiz os princípios mais básicos da seleção natural? A teoria da evolução sustenta que todos os instintos, impulsos e emoções evoluíram no interesse único da sobrevivência e da reprodução. Assim, a reprodução continuada de animais de fazenda não demonstraria que suas necessidades reais foram contempladas? Como um porco pode ter uma “necessidade” que na verdade não é necessária à sua sobrevivência e à sua reprodução?
É verdade que todos os instintos, impulsos e emoções evoluíram a fim de se adaptar às pressões evolutivas para a sobrevivência e a reprodução. No entanto, se e quando essas pressões desaparecerem subitamente, os instintos, impulsos e emoções que elas configuraram não desaparecerão com elas. Ao menos não instantaneamente. Mesmo que não forem mais instrumentais para a sobrevivência e a reprodução, continuam a moldar as experiências subjetivas do animal. Para os animais, e também para os humanos, a agricultura modificou as pressões de seleção quase da noite para o dia, sem contudo alterar seus impulsos físicos, emocionais e sociais. É claro que a evolução não fica estacionária, por isso continuou a modificar humanos e animais nos 12 mil anos transcorridos desde o advento da agricultura. Por exemplo, os humanos na Europa e na Ásia Ocidental desenvolveram a capacidade de digerir leite de vaca, enquanto as vacas perdiam seu medo dos humanos, e hoje produzem muito mais leite do que seus antepassados selvagens. Mas essas mudanças são superficiais. As profundas estruturas sensoriais e emocionais de vacas, porcos e humanos não mudaram muito desde a Idade da Pedra.
Por que os humanos modernos gostam tanto de doces? Não porque no início do século XXI tenhamos de nos empanturrar de sorvete e de chocolate para poder sobreviver, e sim porque, quando nossos antepassados na Idade da Pedra deparavam com frutas doces e mel, o mais sensato a fazer era comer o quanto pudessem e o mais rapidamente possível. Por que os jovens dirigem com imprudência, envolvem-se em discussões violentas, e hackeiam sites confidenciais na internet? Porque estão seguindo antigas imposições genéticas que podem ser inúteis e até contraproducentes na atualidade, mas que faziam sentido em termos evolucionários 70 mil anos atrás. Um jovem caçador que arriscava sua vida caçando um mamute ofuscava todos os seus competidores e obtinha a mão da beldade local; hoje estamos impregnados de seus genes viris.
Exatamente a mesma lógica evolutiva modela a vida de porcos, porcas e leitões em fazendas controladas por humanos. Para poder sobreviver e se reproduzir em ambiente selvagem, javalis precisavam percorrer vastos territórios, familiarizar-se com seu meio ambiente e acautelar-se contra armadilhas e predadores. Além do mais, tinham de comunicar-se e cooperar com seus camaradas da mesma espécie, formando grupos complexos dominados por matriarcas velhas e experientes. Consequentemente, as pressões evolutivas criaram javalis selvagens — e javalis fêmeas ainda mais selvagens —, animais sumamente inteligentes, caracterizados por uma curiosidade vívida e fortes impulsos para socializar, brincar, vagar e explorar o entorno. Uma porca que nascesse de alguma mutação rara que a fizesse indiferente a seu meio ambiente ou a outros porcos-do-mato teria pouca probabilidade de sobreviver ou se reproduzir.
Os descendentes dos javalis — os porcos domesticados — herdaram sua inteligência, sua curiosidade e suas aptidões sociais. Assim como os javalis, os porcos domesticados se comunicam usando uma rica variedade de sinais vocais e olfativos: porcas mães reconhecem o grunhido singular de seus leitões, e leitões com dois dias de idade já diferenciam os chamados de sua mãe do de outras porcas. O professor Stanley Curtis, da Universidade Estadual da Pensilvânia, treinou dois porcos — chamados Hamlet e Omelete — para manejar com o focinho um controle especial. Ele descobriu que os porcos rapidamente já competiam com primatas no processo de aprender e jogar jogos simples de computador.
Hoje em dia, a maioria das porcas em fazendas industriais não joga jogos de computador. Durante a gestação, ficam trancadas por seus senhores humanos em minúsculos cercados de dois metros por sessenta centímetros. Esses engradados, com piso de concreto e barras de metal, mal permitem que as porcas prenhes se virem ou durmam deitadas de lado, muito menos que caminhem. Depois de três meses e meio nessas condições, elas são levadas para cercados um pouco mais largos, onde os filhotes nascem e são alimentados. Embora devessem mamar durante dez a vinte semanas, nas fazendas industriais os leitões são desmamados à força depois de quatro semanas, separados de suas mães e enviados para a engorda e o abate. A mãe é imediatamente inseminada e devolvida ao cercado de gestação para dar início a mais um ciclo. Uma porca típica passaria por cinco a dez ciclos antes de ser ela mesma abatida. Em anos recentes, o uso desses engradados foi restringido na União Europeia e em alguns estados dos Estados Unidos, mas ainda são utilizados em muitos países, e dezenas de milhões de porcas reprodutoras passam quase toda sua vida dentro deles.
Os fazendeiros humanos cuidam de tudo de que a porca necessita para poder sobreviver e reproduzir. Ela recebe comida suficiente, é vacinada, protegida dos elementos e inseminada artificialmente. De uma perspectiva objetiva, a porca não precisa mais explorar o entorno, socializar com outros porcos, apegar-se a seus filhotes, nem mesmo caminhar. Entretanto, de uma perspectiva subjetiva, a porca ainda sente fortes impulsos para realizar todas essas ações e, se eles não forem satisfeitos, o animal sofre imensamente. Porcas trancadas em cercados de gestação costumam demonstrar frustração aguda, alternada com extremo desespero.


Esta é a lição básica da psicologia evolutiva: uma necessidade moldada há milhares de gerações continua a ser sentida subjetivamente mesmo se não for mais necessária na atualidade para a sobrevivência e a reprodução. Tragicamente, a Revolução Agrícola conferiu aos humanos o poder de assegurar a sobrevivência e a reprodução de animais domesticados enquanto ignora suas necessidades subjetivas.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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