quinta-feira, 4 de julho de 2019

Caballo Verde

Com Federico e Alberti, que vivia perto de minha casa numa águafurtada sobre um arvoredo, o arvoredo perdido, com o escultor Alberto, padeiro de Toledo que já era então mestre da escultura abstrata, com Altolaguirre e Bergamín, com o grande poeta Luís Cernuda, com Vicente Aleixandre, poeta de dimensão ilimitada, com o arquiteto Luís Lacasa, com todos eles formando um só grupo, ou em varios, nos víamos diariamente em casas e cafés.
Da Castellana ou da cervejaria de Correos íamos até minha casa, a casa das flores, no bairro de Argüelles. Do segundo andar de um dos grandes ônibus que meu compatriota, o grande Cotapos, chamava “bombardones”, descíamos em grupos barulhentos para comer, beber e cantar. Lembro entre os jovens companheiros de poesia e alegria de Arturo Serrano Plaja, poeta; de José Caballero, pintor de deslumbrante talento e graça; de Antonio Aparício, que chegou da Andaluzia diretamente para minha casa; e de tantos outros que já não estão ou que já se foram, mas cuja fraternidade me faz falta como parte de meu corpo ou substância de minha alma.
Madri! íamos com Maruja Maio, a pintora galega, pelos barrios bajos buscando as casas onde se vendem cestas e esteiras, buscando as ruas dos tanoeiros, dos cordoeiros, de todas as matérias secas da Espanha, matérias que envolvem e tomam conta de seu coração. A Espanha é seca e pedregosa, castigada pelo sol vertical que arranca chispas da planura, construindo castelos de luz com a poeirada. Os únicos verdadeiros rios da Espanha são seus poetas: Quevedo com suas águas verdes e profundas, de espuma negra; Calderón com suas silabas que cantam; os cristalinos Argensolas; Góngora, rio de rubis.

Vi Valle Inclán uma só vez. Muito magro, com sua interminável barba branca, pareceu-me que saía dentre as folhas de seus próprios livros, prensado por elas, com uma cor de página amarelada.
Conheci Ramón Gómez de la Serna em sua cripta de Pombo e depois fui vê-lo em sua casa. Não posso esquecer a voz estentórea de Ramón dirigindo, de seu lugar no café, as conversas e as risadas, os pensamentos e o fumo. Ramón Gómez de la Serna é para mim um dos maiores escritores de nossa língua, tendo seu gênio a heterogênea grandeza de Quevedo e Picasso. Qualquer página de Ramón Gómez de la Serna esquadrinha como um furão no físico e no metafisico, a verdade e a sombra e o que sabe e escreveu sobre a Espanha ninguém disse melhor que ele. Foi o acumulador de um universo secreto. Mudou a sintaxe do idioma com suas próprias mãos, deixando-o impregnado com suas impressões digitais que ninguém pode apagar.
Vi Dom Antonio Machado várias vezes sentado em seu café com o traje negro de tabelião, muito calado e discreto, doce e severo como uma árvore velha da Espanha. E certo que o maledicente Juan Ramón Jiménez, velho enfant terrible da poesia, dizia dele, de Dom Antonio, que este andava sempre cheio de cinzas e nos bolsos só guardava guimbas de cigarros.
Juan Ramón Jiménez, poeta de grande esplendor, foi encarregado de fazer conhecer a legendária inveja espanhola. Este poeta, que não tinha necessidade de invejar ninguém, posto que sua obra é um grande resplendor que começa com a escuridão do século, vivia como um falso ermitão, reprovando de seu esconderijo a quantos acreditava que lhe fizessem sombra.
Os jovens - García Lorca, Alberti, assim como Jorge Guillén e Pedro Salinas - eram perseguidos tenazmente por Juan Ramón, um demônio barbudo que cada dia lançava sua seta contra este ou aquele. Contra mim escrevia todas as semanas uns enrolados comentários que publicava todos os domingos no diário El Sol. Mas optei por viver e deixá-lo viver. Nunca respondi nada. Nunca respondi - nem respondo - a agressões literárias.
O poeta Manuel Altolaguirre, que tinha uma gráfica e vocação de impressor, chegou um dia em minha casa e me contou que ia publicar uma bela revista de poesia com o que de mais alto e melhor havia de representativo na Espanha.
- Só há uma pessoa que pode dirigi-la - disse. - E esta pessoa és tu.
Eu tinha sido um épico inventor de revistas que logo deixava ou era deixado por elas. Em 1925 fundei uma tal Caballo de Bastos. Era quando escrevíamos sem pontuação e descobríamos Dublin através das ruas de Joyce. Humberto Díaz Casanueva usava então um suéter com gola roulé, grande audácia para um poeta da época. Sua poesia era bela e imaculada como continuou sendo per secula. Rosamel del Valle vestia-se inteiramente de negro, do chapéu aos sapatos, como deviam vestir-se os poetas. Nestes dois companheiros eminentes recordo como colaboradores ativos. Esqueço de outros. Mas o galope de nosso cavalo sacudiu a época.
- Sim, Manolito, aceito a direção da revista.
Manuel Altolaguirre era um impressor glorioso cujas próprias mãos enriqueciam as caixas com estupendos tipos bodônis. Manolito honrava a poesia com a sua e com suas mãos de arcanjo trabalhador. Traduziu e imprimiu com beleza singular o Adonais de Shelley, elegia à morte de John Keats. Imprimiu também a Fábula del Genil, de Pedro Espinosa. Quanto fulgor despediam as estrofes áureas e esmaltadas do poema naquela majestosa tipografia que destacava as palavras como se estivessem fundindo-se de novo no cadinho.
De meu “Caballo Verde” saíram cinco números primorosos, de indubitável beleza. Gostava de ver Manolito, sempre rindo e cheio de sorrisos, levantar os tipos, colocá-los nas caixas e depois acionar com o pé a pequena prensa de fazer cartões. Às vezes levava consigo os exemplares da edição no carrinho de sua filha Paloma. Os transeuntes o elogiavam:
- Que pai admirável! Atravessar o trânsito infernal com essa criatura!
A criatura era a Poesia que viajava em seu Caballo Verde. A revista publicou o primeiro novo poema de Miguel Hernández e, naturalmente, os de Federico, Cernuda, Aleixandre, Guillén (o bom, o espanhol). Juan Ramón Jiménez, neurótico, do século passado, continuava lançando-me dardos dominicais. Rafael Alberti não gostou do título:
- Por que o cavalo vai ser verde? Deveria chamar-se Caballo Rojo.
Não mudei a cor. Mas Rafael e eu não brigamos por isso. Nunca brigamos por nada. Há bastante lugar no mundo para cavalos e poetas de todas as cores do arco-íris.
O sexto número de Caballo Verde ficou na rua Viriato sem paginar nem costurar. Estava dedicado a Julio Herrera e Reissig – segundo Leautreamont de Montevidéu - e os textos que em sua homenagem os poetas espanhóis escreveram, ficaram aí retidos com sua beleza, sem gestação nem destino. A revista devia aparecer em 19 de julho de 1936 mas naquele dia a rua se encheu de pólvora. Um general desconhecido chamado Francisco Franco tinha se rebelado contra a República em sua guarnição da África.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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