Com
Federico e Alberti, que vivia perto de minha casa numa águafurtada
sobre um arvoredo, o arvoredo perdido, com o escultor Alberto,
padeiro de Toledo que já era então mestre da escultura abstrata,
com Altolaguirre e Bergamín, com o grande poeta Luís Cernuda, com
Vicente Aleixandre, poeta de dimensão ilimitada, com o arquiteto
Luís Lacasa, com todos eles formando um só grupo, ou em varios, nos
víamos diariamente em casas e cafés.
Da
Castellana ou da cervejaria de Correos íamos até minha casa, a casa
das flores, no bairro de Argüelles. Do segundo andar de um dos
grandes ônibus que meu compatriota, o grande Cotapos, chamava
“bombardones”, descíamos em grupos barulhentos para comer, beber
e cantar. Lembro entre os jovens companheiros de poesia e alegria de
Arturo Serrano Plaja, poeta; de José Caballero, pintor de
deslumbrante talento e graça; de Antonio Aparício, que chegou da
Andaluzia diretamente para minha casa; e de tantos outros que já não
estão ou que já se foram, mas cuja fraternidade me faz falta como
parte de meu corpo ou substância de minha alma.
Madri!
íamos com Maruja Maio, a pintora galega, pelos barrios bajos
buscando as casas onde se vendem cestas e esteiras, buscando as ruas
dos tanoeiros, dos cordoeiros, de todas as matérias secas da
Espanha, matérias que envolvem e tomam conta de seu coração. A
Espanha é seca e pedregosa, castigada pelo sol vertical que arranca
chispas da planura, construindo castelos de luz com a poeirada. Os
únicos verdadeiros rios da Espanha são seus poetas: Quevedo com
suas águas verdes e profundas, de espuma negra; Calderón com suas
silabas que cantam; os cristalinos Argensolas; Góngora, rio de
rubis.
Vi
Valle Inclán uma só vez. Muito magro, com sua interminável barba
branca, pareceu-me que saía dentre as folhas de seus próprios
livros, prensado por elas, com uma cor de página amarelada.
Conheci
Ramón Gómez de la Serna em sua cripta de Pombo e depois fui vê-lo
em sua casa. Não posso esquecer a voz estentórea de Ramón
dirigindo, de seu lugar no café, as conversas e as risadas, os
pensamentos e o fumo. Ramón Gómez de la Serna é para mim um dos
maiores escritores de nossa língua, tendo seu gênio a heterogênea
grandeza de Quevedo e Picasso. Qualquer página de Ramón Gómez de
la Serna esquadrinha como um furão no físico e no metafisico, a
verdade e a sombra e o que sabe e escreveu sobre a Espanha ninguém
disse melhor que ele. Foi o acumulador de um universo secreto. Mudou
a sintaxe do idioma com suas próprias mãos, deixando-o impregnado
com suas impressões digitais que ninguém pode apagar.
Vi
Dom Antonio Machado várias vezes sentado em seu café com o traje
negro de tabelião, muito calado e discreto, doce e severo como uma
árvore velha da Espanha. E certo que o maledicente Juan Ramón
Jiménez, velho enfant terrible da poesia, dizia dele, de Dom
Antonio, que este andava sempre cheio de cinzas e nos bolsos só
guardava guimbas de cigarros.
Juan
Ramón Jiménez, poeta de grande esplendor, foi encarregado de fazer
conhecer a legendária inveja espanhola. Este poeta, que não tinha
necessidade de invejar ninguém, posto que sua obra é um grande
resplendor que começa com a escuridão do século, vivia como um
falso ermitão, reprovando de seu esconderijo a quantos acreditava
que lhe fizessem sombra.
Os
jovens - García Lorca, Alberti, assim como Jorge Guillén e Pedro
Salinas - eram perseguidos tenazmente por Juan Ramón, um demônio
barbudo que cada dia lançava sua seta contra este ou aquele. Contra
mim escrevia todas as semanas uns enrolados comentários que
publicava todos os domingos no diário El Sol. Mas optei por viver e
deixá-lo viver. Nunca respondi nada. Nunca respondi - nem respondo -
a agressões literárias.
O
poeta Manuel Altolaguirre, que tinha uma gráfica e vocação de
impressor, chegou um dia em minha casa e me contou que ia publicar
uma bela revista de poesia com o que de mais alto e melhor havia de
representativo na Espanha.
-
Só há uma pessoa que pode dirigi-la - disse. - E esta pessoa és
tu.
Eu
tinha sido um épico inventor de revistas que logo deixava ou era
deixado por elas. Em 1925 fundei uma tal Caballo de Bastos. Era
quando escrevíamos sem pontuação e descobríamos Dublin através
das ruas de Joyce. Humberto Díaz Casanueva usava então um suéter
com gola roulé, grande audácia para um poeta da época. Sua poesia
era bela e imaculada como continuou sendo per secula. Rosamel del
Valle vestia-se inteiramente de negro, do chapéu aos sapatos, como
deviam vestir-se os poetas. Nestes dois companheiros eminentes
recordo como colaboradores ativos. Esqueço de outros. Mas o galope
de nosso cavalo sacudiu a época.
-
Sim, Manolito, aceito a direção da revista.
Manuel
Altolaguirre era um impressor glorioso cujas próprias mãos
enriqueciam as caixas com estupendos tipos bodônis. Manolito honrava
a poesia com a sua e com suas mãos de arcanjo trabalhador. Traduziu
e imprimiu com beleza singular o Adonais de Shelley, elegia à morte
de John Keats. Imprimiu também a Fábula del Genil, de Pedro
Espinosa. Quanto fulgor despediam as estrofes áureas e esmaltadas do
poema naquela majestosa tipografia que destacava as palavras como se
estivessem fundindo-se de novo no cadinho.
De
meu “Caballo Verde” saíram cinco números primorosos, de
indubitável beleza. Gostava de ver Manolito, sempre rindo e cheio de
sorrisos, levantar os tipos, colocá-los nas caixas e depois acionar
com o pé a pequena prensa de fazer cartões. Às vezes levava
consigo os exemplares da edição no carrinho de sua filha Paloma. Os
transeuntes o elogiavam:
-
Que pai admirável! Atravessar o trânsito infernal com essa
criatura!
A
criatura era a Poesia que viajava em seu Caballo Verde. A
revista publicou o primeiro novo poema de Miguel Hernández e,
naturalmente, os de Federico, Cernuda, Aleixandre, Guillén (o bom, o
espanhol). Juan Ramón Jiménez, neurótico, do século passado,
continuava lançando-me dardos dominicais. Rafael Alberti não gostou
do título:
-
Por que o cavalo vai ser verde? Deveria chamar-se Caballo Rojo.
Não
mudei a cor. Mas Rafael e eu não brigamos por isso. Nunca brigamos
por nada. Há bastante lugar no mundo para cavalos e poetas de todas
as cores do arco-íris.
O
sexto número de Caballo Verde ficou na rua Viriato sem
paginar nem costurar. Estava dedicado a Julio Herrera e Reissig –
segundo Leautreamont de Montevidéu - e os textos que em sua
homenagem os poetas espanhóis escreveram, ficaram aí retidos com
sua beleza, sem gestação nem destino. A revista devia aparecer em
19 de julho de 1936 mas naquele dia a rua se encheu de pólvora. Um
general desconhecido chamado Francisco Franco tinha se rebelado
contra a República em sua guarnição da África.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
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