quinta-feira, 18 de julho de 2019

Americanos imaginários

Você e eu somos americanos imaginários. Nossa experiência do Novo Mundo se deu, até agora, vicariamente, no escuro e seguro recesso das salas de cinema. Não vivemos nossa história, nós a assistimos. Há gerações que somos hóspedes formais e um pouco constrangidos deste lado selvagem da Terra, europeus transplantados em permanente e hereditário susto com a ameaça de rejeição. Reconstituímos nossa civilização ibérica na praia, timidamente, com sacadas rendadas para o mar, e protelamos o sujo trabalho de desbravarmos nossa própria fronteira. O mato persiste na imaginação nacional como a seara sombria de todos os terrores. No subconsciente de cada brasileiro, não duvido, vive a secreta certeza de que os índios um dia ainda se reagruparão e nos mandarão de volta às caravelas. Calcamos toda uma cultura sobre o provisório. Não existe lugar mais improvável para se erguer uma cidade do que aquela estreita faixa de terra pantanosa entre o mar e a rocha onde construíram o Rio de Janeiro e aí está: o Rio é o escandaloso protótipo do modo de ser brasileiro. A angústia de Brasília não é sua desolação futurista, é a distância que a separa das caravelas. O Rio, a vida provisória, era o nosso álibi. Certamente ninguém poderia nos acusar do crime da conquista se preferíamos o inocente lazer da praia à incerta e aviltante faina dos pioneiros. A custo decidimos trocar nossa inocência por um continente. E ainda há gente aterrorizada com as consequências, antevendo represálias atrás de cada arbusto. Ninguém faz história impunemente, sussurram, arrumando seus baús para a fuga. E o que vão dizer de nós na Europa?
Os norte-americanos não protelaram o seu crime, protelaram a culpa. Os heróis da nossa infância levavam a virtude no coldre e distribuíam rajadas de civilização. Sem piscar e sem remorsos. Você pode imaginar a Cavalaria Americana dando explicações para o mundo sobre o seu último massacre de índios? Ou Tom Mix entregue a dúvidas ético-existenciais sobre seu direito de quebrar a cara do bandido? A violência era o seu próprio pretexto. E nós, no cinema, vibrando. Conquistando o nosso oeste espiritual sem sair da praia. Matando de mãos limpas. A nossa inocência enclausurada no escuro. O nosso álibi intacto. E não foi só a fronteira que experimentamos por procuração. O crescimento, a aventura, o ápice e a decadência do Novo Mundo resumem-se na história, e no cinema, dos Estados Unidos como uma daquelas pantominas que reproduzem todas as idades do Homem em alguns segundos sobre o palco. Variam os mocinhos e os vilões, mas o enredo é sempre o mesmo: a violência justificada em pias metáforas, os rituais de passagem incorporados à trajetória de um herói mais ou menos humano e seus triunfos creditados à livre iniciativa individual e à superioridade inerente ao homem branco, cristão e empreendedor. Assim o cinismo de Humphrey Bogart é uma arma de sobrevivência tão válida e defensável numa civilização industrial quanto era o revólver de Durango Kid na primeira etapa da aventura americana. Bogart representa o herói urbano às voltas com outra fronteira selvagem, a livre-empresa beirando o gangsterismo, mas a sua ironia não era ainda um sinal de reconhecimento da decadência iminente. Os heróis de Peckinpah, sim, são protagonistas conscientes da derrocada. Neles, finalmente, a culpa alcança o crime. Neles a aventura desbravadora é desmascarada e a violência perde todos os seus disfarces.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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