Você
e eu somos americanos imaginários. Nossa experiência do Novo Mundo
se deu, até agora, vicariamente, no escuro e seguro recesso das
salas de cinema. Não vivemos nossa história, nós a assistimos. Há
gerações que somos hóspedes formais e um pouco constrangidos deste
lado selvagem da Terra, europeus transplantados em permanente e
hereditário susto com a ameaça de rejeição. Reconstituímos nossa
civilização ibérica na praia, timidamente, com sacadas rendadas
para o mar, e protelamos o sujo trabalho de desbravarmos nossa
própria fronteira. O mato persiste na imaginação nacional como a
seara sombria de todos os terrores. No subconsciente de cada
brasileiro, não duvido, vive a secreta certeza de que os índios um
dia ainda se reagruparão e nos mandarão de volta às caravelas.
Calcamos toda uma cultura sobre o provisório. Não existe lugar mais
improvável para se erguer uma cidade do que aquela estreita faixa de
terra pantanosa entre o mar e a rocha onde construíram o Rio de
Janeiro e aí está: o Rio é o escandaloso protótipo do modo de ser
brasileiro. A angústia de Brasília não é sua desolação
futurista, é a distância que a separa das caravelas. O Rio, a vida
provisória, era o nosso álibi. Certamente ninguém poderia nos
acusar do crime da conquista se preferíamos o inocente lazer da
praia à incerta e aviltante faina dos pioneiros. A custo decidimos
trocar nossa inocência por um continente. E ainda há gente
aterrorizada com as consequências, antevendo represálias atrás de
cada arbusto. Ninguém faz história impunemente, sussurram,
arrumando seus baús para a fuga. E o que vão dizer de nós na
Europa?
Os
norte-americanos não protelaram o seu crime, protelaram a culpa. Os
heróis da nossa infância levavam a virtude no coldre e distribuíam
rajadas de civilização. Sem piscar e sem remorsos. Você pode
imaginar a Cavalaria Americana dando explicações para o mundo sobre
o seu último massacre de índios? Ou Tom Mix entregue a dúvidas
ético-existenciais sobre seu direito de quebrar a cara do bandido? A
violência era o seu próprio pretexto. E nós, no cinema, vibrando.
Conquistando o nosso oeste espiritual sem sair da praia. Matando de
mãos limpas. A nossa inocência enclausurada no escuro. O nosso
álibi intacto. E não foi só a fronteira que experimentamos por
procuração. O crescimento, a aventura, o ápice e a decadência do
Novo Mundo resumem-se na história, e no cinema, dos Estados Unidos
como uma daquelas pantominas que reproduzem todas as idades do Homem
em alguns segundos sobre o palco. Variam os mocinhos e os vilões,
mas o enredo é sempre o mesmo: a violência justificada em pias
metáforas, os rituais de passagem incorporados à trajetória de um
herói mais ou menos humano e seus triunfos creditados à livre
iniciativa individual e à superioridade inerente ao homem branco,
cristão e empreendedor. Assim o cinismo de Humphrey Bogart é uma
arma de sobrevivência tão válida e defensável numa civilização
industrial quanto era o revólver de Durango Kid na primeira etapa da
aventura americana. Bogart representa o herói urbano às voltas com
outra fronteira selvagem, a livre-empresa beirando o gangsterismo,
mas a sua ironia não era ainda um sinal de reconhecimento da
decadência iminente. Os heróis de Peckinpah, sim, são
protagonistas conscientes da derrocada. Neles, finalmente, a culpa
alcança o crime. Neles a aventura desbravadora é desmascarada e a
violência perde todos os seus disfarces.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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