Haverá
uma teoria capaz de dar conta da poesia? Haverá uma gaiola em que se
prenda tal ave? Acredito que, se algo assim existe, ou pode existir,
é, ao contrário, uma poesia que inclua a teoria como parte, pedaço,
até espinha, nunca como coração. Uma poesia capaz de amaciá-la,
derretê-la, e que dela faça não princípio ou fim, mas meio.
É
o que faz Rogério Luz no assombroso Escritas (Editora da
Universidade Federal de Goiás). Ao se tornar adepto, servidor ou
funcionário de um sistema de ideias (ao ceder ao conforto de uma
grade teórica que o proteja da divergência), o escritor mutila sua
escrita. Um termômetro mede a temperatura, e não os batimentos
cardíacos. Um estetoscópio ausculta o coração ou os pulmões, e
não a massa corporal. Uma balança registra o peso – e assim por
diante.
Com
a teoria X, assim também, só se chega a próprio X. Com Y, a Y, e
assim vai. Por mais profundos e exatos que sejam, os recortes
traçados pela teoria deixam escapar o Outro – isto é, tudo o que
não lhe compete ver ou medir. A poesia, ao contrário, lança-se
sobre o desconhecido. Não que tenha a ilusão de abarcá-lo ou
esgotá-lo, não que pretenda tomar posse da Coisa. O poeta sabe que
tudo o que vê não é o que vê, mas algo colocado em seu lugar. Não
é a Coisa, mas um seu representante. Como se você conseguisse
sempre jantar com o embaixador, mas nunca com o presidente.
Como
uma prótese, nos mostra Rogério Luz, que se coloca no lugar de uma
perna amputada. É, pois, a ausência e seu colar de substitutos que
o poeta visa. A teoria “vê” para dar prova de si mesma. A
poesia, ao contrário, “vê” para se sobressaltar com uma
máscara. O poeta “vê” máscaras – nomes, palavras, metáforas.
O mais terrível: se os perfura, encontra o nada, e não a Coisa,
isto é, o real.
Em
vez de uma “teoria da poesia”, me sugere o livro de Rogério Luz,
o poeta instala uma “poesia da teoria”. O poeta pensa por si, e
não em nome de. Parte do caos e da anomia, e não de um sistema
azeitado de conceitos. A poesia magnífica de Rogério Luz pensa,
todo o tempo e sem parar, mas esse não é um procedimento prático,
não é uma aplicação; é um sangramento. Pensa não para clarear
ou organizar. Tampouco na esperança vã de dar conta do real. Mas
para nele se sujar, se derreter, arder.
“As
coisas são o modo de dizê-las/ dizer as coisas é criá-las para
além da matéria.” As coisas mesmas, a Coisa, será que existe? Ou
ela é só um efeito dos recortes que – como crianças travessas
com suas tesouras – fazemos com a faca atroz do nome? “O modo de
dizer de uma coisa é a própria coisa/ para que não sucumba no
abismo da desordem/ de onde nunca deveria ter saído.” A desordem
não é suportável. Ninguém aguenta entrar em uma casa desarrumada
por ladrões (leitores) sem logo juntar alguns papéis, recolocar
coisas nas gavetas, trancar portas.
E
isso é tudo. Escreve Rogério: “Não há nada anterior ou
posterior à palavra/ a não ser seu nome (e ser)”. O nome é o
ser. Está bom: não é o ser, não é todo o ser, mas é o que dele
podemos ter. O nome é tudo o que temos. Se amo, preciso dizer que
amo, ou o sentimento murcha. Se tenho raiva, preciso desabafar, ou
despenco para dentro. O nome, eis tudo. É claro: existe uma vida
material, que no fim é a vida verdadeira. Essa vida sensível que a
ciência luta para ordenar. Fora disso, nos diz Rogério, o que temos
é vazio, treva – abismo.
As
coisas são o modo como a faca das palavras recorta o caos. Existem
facas ásperas e cegas: discursos, dogmas, normas. Mas existe a
poesia, que é faca doce, “faca só lâmina”, como ensinou João
Cabral. Um sopro de silêncio, nos diz Rogério, atravessa “a
matéria primordial de onde provêm as coisas”. Não que o real não
exista; não que seja uma ilusão. Ele está aí – aqui! Só não
conseguimos pegá-lo e, para seguir em frente, o encobrimos.
Vivemos,
portanto, em uma enrascada. Assim Rogério, poeta-filósofo, a
resume: “Dizer a coisa afasta seu encanto/ e não dizê-la não a
traz mais perto”. Estamos, sempre, a um passo de – lugar por
excelência da poesia, que nem aceita desistir, nem pretende
alcançar. No intervalo entre o som (palavra) e a mudez, diz Rogério,
há “a voz do galo/ um feito sem vez”.
A
palavra não é mãe, é madrasta. “Língua-mãe, língua pátria”
– lembra Rogério os nomes de uma ilusão. Mas que mentira! O poeta
(metáfora do enteado) é “aquilo que perdeu espaço”. Não
existe lugar para a poesia. Podemos entreouvir bramidos, pios,
murmúrios, urros, mas nunca o poema. Ele não passa de um sobrevoo.
Um pé de vento, invisível, que nos alisa. Escreve Rogério: “O
olho vê o vento (que acaricia as coisas, penso eu)/ não as coisas”.
A
poesia é muda (sem sentido) porque tenta ultrapassar a face
utilitária das palavras. Para chegar a quê? Aqui me arrisco a
pensar (com Rogério, mas sem a sua permissão) em Clarice: e chego
ao neutro. Agora, sim, é Rogério quem escreve: “Serve a
linguagem, dizem/ a dar sentido às coisas./ Não se alçariam a
tanto os animais”. Os animais – o mundo selvagem – não se
arriscam e por isso permanecem no silêncio ou nos ruídos
incompreensíveis. Há em cada animal a mudez da poesia.
Muitos
poetas, supostamente racionais, buscam a palavra precisa, exata – a
palavra conceito, bem alinhavada, com um belo fecho de botões. Mas,
recorda Rogério, a palavra precisa (perfeita), aquela que se encaixa
na Coisa, é inarticulável. “Grito inarticulado/ que lembra a voz
da luz/ a precisa palavra/ ao produzir cegueiras/ de todo recomeço.”
O desejo de precisão mata a palavra, que é só uma carícia.
Rouba-lhe o lado sensual – o poema. Enquanto você lê um poema,
não mais escuta a vida. Enquanto aceita o poema, desiste da Coisa.
“Há na poesia muitas vozes/ e um único sentido/ oco.”
A
língua verdadeira é muda. Nada tem a dizer. É só um beijo que
damos na face amada. “A língua da verdade/ arde com fulgor sobre/
absoluta mudez”, escreve Rogério. “A palavra é a sombra/ do que
não vês.” É difícil aceitar que a palavra não passe de uma
cegueira que ilumina. Aceitar que o presente, como o poeta nos
mostra, transcorre sempre à margem do inexistente.
José
Castello, in Sábados inquietos
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