sábado, 15 de junho de 2019

O gosto do neutro

Haverá uma teoria capaz de dar conta da poesia? Haverá uma gaiola em que se prenda tal ave? Acredito que, se algo assim existe, ou pode existir, é, ao contrário, uma poesia que inclua a teoria como parte, pedaço, até espinha, nunca como coração. Uma poesia capaz de amaciá-la, derretê-la, e que dela faça não princípio ou fim, mas meio.
É o que faz Rogério Luz no assombroso Escritas (Editora da Universidade Federal de Goiás). Ao se tornar adepto, servidor ou funcionário de um sistema de ideias (ao ceder ao conforto de uma grade teórica que o proteja da divergência), o escritor mutila sua escrita. Um termômetro mede a temperatura, e não os batimentos cardíacos. Um estetoscópio ausculta o coração ou os pulmões, e não a massa corporal. Uma balança registra o peso – e assim por diante.
Com a teoria X, assim também, só se chega a próprio X. Com Y, a Y, e assim vai. Por mais profundos e exatos que sejam, os recortes traçados pela teoria deixam escapar o Outro – isto é, tudo o que não lhe compete ver ou medir. A poesia, ao contrário, lança-se sobre o desconhecido. Não que tenha a ilusão de abarcá-lo ou esgotá-lo, não que pretenda tomar posse da Coisa. O poeta sabe que tudo o que vê não é o que vê, mas algo colocado em seu lugar. Não é a Coisa, mas um seu representante. Como se você conseguisse sempre jantar com o embaixador, mas nunca com o presidente.
Como uma prótese, nos mostra Rogério Luz, que se coloca no lugar de uma perna amputada. É, pois, a ausência e seu colar de substitutos que o poeta visa. A teoria “vê” para dar prova de si mesma. A poesia, ao contrário, “vê” para se sobressaltar com uma máscara. O poeta “vê” máscaras – nomes, palavras, metáforas. O mais terrível: se os perfura, encontra o nada, e não a Coisa, isto é, o real.
Em vez de uma “teoria da poesia”, me sugere o livro de Rogério Luz, o poeta instala uma “poesia da teoria”. O poeta pensa por si, e não em nome de. Parte do caos e da anomia, e não de um sistema azeitado de conceitos. A poesia magnífica de Rogério Luz pensa, todo o tempo e sem parar, mas esse não é um procedimento prático, não é uma aplicação; é um sangramento. Pensa não para clarear ou organizar. Tampouco na esperança vã de dar conta do real. Mas para nele se sujar, se derreter, arder.
As coisas são o modo de dizê-las/ dizer as coisas é criá-las para além da matéria.” As coisas mesmas, a Coisa, será que existe? Ou ela é só um efeito dos recortes que – como crianças travessas com suas tesouras – fazemos com a faca atroz do nome? “O modo de dizer de uma coisa é a própria coisa/ para que não sucumba no abismo da desordem/ de onde nunca deveria ter saído.” A desordem não é suportável. Ninguém aguenta entrar em uma casa desarrumada por ladrões (leitores) sem logo juntar alguns papéis, recolocar coisas nas gavetas, trancar portas.
E isso é tudo. Escreve Rogério: “Não há nada anterior ou posterior à palavra/ a não ser seu nome (e ser)”. O nome é o ser. Está bom: não é o ser, não é todo o ser, mas é o que dele podemos ter. O nome é tudo o que temos. Se amo, preciso dizer que amo, ou o sentimento murcha. Se tenho raiva, preciso desabafar, ou despenco para dentro. O nome, eis tudo. É claro: existe uma vida material, que no fim é a vida verdadeira. Essa vida sensível que a ciência luta para ordenar. Fora disso, nos diz Rogério, o que temos é vazio, treva – abismo.
As coisas são o modo como a faca das palavras recorta o caos. Existem facas ásperas e cegas: discursos, dogmas, normas. Mas existe a poesia, que é faca doce, “faca só lâmina”, como ensinou João Cabral. Um sopro de silêncio, nos diz Rogério, atravessa “a matéria primordial de onde provêm as coisas”. Não que o real não exista; não que seja uma ilusão. Ele está aí – aqui! Só não conseguimos pegá-lo e, para seguir em frente, o encobrimos.
Vivemos, portanto, em uma enrascada. Assim Rogério, poeta-filósofo, a resume: “Dizer a coisa afasta seu encanto/ e não dizê-la não a traz mais perto”. Estamos, sempre, a um passo de – lugar por excelência da poesia, que nem aceita desistir, nem pretende alcançar. No intervalo entre o som (palavra) e a mudez, diz Rogério, há “a voz do galo/ um feito sem vez”.
A palavra não é mãe, é madrasta. “Língua-mãe, língua pátria” – lembra Rogério os nomes de uma ilusão. Mas que mentira! O poeta (metáfora do enteado) é “aquilo que perdeu espaço”. Não existe lugar para a poesia. Podemos entreouvir bramidos, pios, murmúrios, urros, mas nunca o poema. Ele não passa de um sobrevoo. Um pé de vento, invisível, que nos alisa. Escreve Rogério: “O olho vê o vento (que acaricia as coisas, penso eu)/ não as coisas”.
A poesia é muda (sem sentido) porque tenta ultrapassar a face utilitária das palavras. Para chegar a quê? Aqui me arrisco a pensar (com Rogério, mas sem a sua permissão) em Clarice: e chego ao neutro. Agora, sim, é Rogério quem escreve: “Serve a linguagem, dizem/ a dar sentido às coisas./ Não se alçariam a tanto os animais”. Os animais – o mundo selvagem – não se arriscam e por isso permanecem no silêncio ou nos ruídos incompreensíveis. Há em cada animal a mudez da poesia.
Muitos poetas, supostamente racionais, buscam a palavra precisa, exata – a palavra conceito, bem alinhavada, com um belo fecho de botões. Mas, recorda Rogério, a palavra precisa (perfeita), aquela que se encaixa na Coisa, é inarticulável. “Grito inarticulado/ que lembra a voz da luz/ a precisa palavra/ ao produzir cegueiras/ de todo recomeço.” O desejo de precisão mata a palavra, que é só uma carícia. Rouba-lhe o lado sensual – o poema. Enquanto você lê um poema, não mais escuta a vida. Enquanto aceita o poema, desiste da Coisa. “Há na poesia muitas vozes/ e um único sentido/ oco.”
A língua verdadeira é muda. Nada tem a dizer. É só um beijo que damos na face amada. “A língua da verdade/ arde com fulgor sobre/ absoluta mudez”, escreve Rogério. “A palavra é a sombra/ do que não vês.” É difícil aceitar que a palavra não passe de uma cegueira que ilumina. Aceitar que o presente, como o poeta nos mostra, transcorre sempre à margem do inexistente.
José Castello, in Sábados inquietos

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