domingo, 14 de abril de 2019

Agora é que são elas - Capítulo 24

1

Dei o braço a Norma e descemos a escada com a elegância que uma pedra de gelo exige para voltar a ser água.
Descemos a escada toda, sob pesado bombardeio de aplausos. Pensei que ia morrer de tanto amor, Norma estava divina. E se distribuiu pela sala, como se fosse um saco de moedas repartidas entre os pobres.
O mordomo se aproximou, com o que mesmo na mão?
Me adiantei.
Já sei, já sei, telefone pra mim.
Ele foi gentil, já que era pago para isso.
Não sei como o senhor adivinhou.

2

Era um papo comprido sobre os warhoos e os seres gasosos dos pantanais de Canopus, que eu já não tinha mais saco pra aguentar. Que se fodam os quartzos de Randôri, os burlemarx de noigandres, os odradex de Íon. Tinha mais a fazer que ficar escutando os despropósitos de uma birutinha, que rondava a festa como uma fera esperando a vítima acabar de morrer.

3

Por que é que não tive uma irmã? Por que é que cresci com alguém que acordava se olhando no espelho, pintando os olhos, ajeitando o cabelo, mordendo os lábios até ficarem em brasa como uma maçã madura?
Agora era tarde. Já estávamos na função lambda.

4

Recompondo a cena do crime. Eu estava ali com o telefone em uma mão e a faca na outra. A vítima flutuava numa poça de sangue. O pescoço tinha recebido um corte de orelha a orelha, que deixava à mostra as cordas vocais, onde um dó maior com quinta aumentada ainda vibrava ao vento.
O inspetor perguntou:
Quantas testemunhas?
Os criados em coro:
Todos nós, senhor.
E para mim:
O senhor quer ter a bondade de me entregar essa faca ensanguentada?
Ora, inspetor, esta faca está toda suja do sangue desta moça. Deixe eu apanhar uma limpinha para o senhor.
Não, eu adoro facas ensanguentadas. Fico com essa aí mesmo.
Ah, Norma Propp, se você soubesse tudo o que eu sinto por você.

5

Se alguém tem alguma coisa a dizer contra este casamento, fale agora ou cale-se para sempre.
E todos realizaram aquele nosso mais fundo desejo infantil.
Um gritou:
Eu tenho, reverendo! Essa mulher é uma vagabunda!
Ela trepou com o noivo antes do casamento!
Ela já é casada!
Ela tem um amante!
Ela cobra um absurdo pra chupar um pau!
Foi com muita fleugma que virei a cabeça para olhar a massa dos fiéis, donde saíam aquelas vozes.
Nisso, uma voz gritou:
Esse cara é viado!
A mãe dele está na zona!
Vi ele de sacanagem com a menininha lá fora!
Ele tem filho com tudo quanto é mulher!
Enquanto diziam aquelas coisas da minha noiva, eu ainda podia tolerar. Mas essa súbita mudança da fortuna, desviando a artilharia de impropérios para cima da minha pessoa, era intolerável. Localizei o cara, e gritei, que ecoou na igreja toda:
Viado é a puta que o pariu!
E parti pra cima. Enfiei a aliança no mindinho da mão direita, e já cheguei batendo. A primeira porrada com a aliança acertou em cima do olho direito, e espirrou sangue. O filho do cara me agarrou por trás, e eu fiz ele ajoelhar contrito com uma cotovelada no saco.
O padre pulou como um tigre, e gritou para o sacristão:
Protege o Santíssimo, o cibório, o ostensório, o turíbulo, o cálice e a patena, que eu vou mostrar a esses filhos da puta o que acontece pra quem não respeita a Casa do Senhor.
Arregaçou a batina, e veio com tudo. Não deu para eu me virar a tempo, e o homem de Deus me acertou um pontapé nos rins, que doeu que nem um gole de gim puro em jejum. Rolei no meio das pernas de umas velhas, que caíram para trás, o primeiro banco derrubou o segundo, que derrubou o terceiro, e assim até a entrada da igreja, como se fossem pedras de dominó.
Do alto do púlpito, o sacristão bombardeava a balbúrdia com hóstias, galhetas de vinho, mitras episcopais, versos em latim, gritando sem parar:
Mas que diabo de casamento é esse?

6

Telefone grudado na orelha pra abafar a algazarra da festa, perguntei, de saco cheio:
E daí?, que foi que os seres gasosos dos pantanais de Canopus fizeram?

7

Vamos brincar de futuro?
Só me faltava mais essa. Bem agora que já estava quase na porta de Norma, me aparece, bem, vocês sabem quem.
Produzi a cara mais puta da vida que eu tinha no estoque de caras para essas horas quando uma garotinha pentelha chega pra você e diz:
Vamos brincar de futuro? Contei 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 1 de novo, 2, e disse:
Puxa, como é que você adivinhou? Eu adoro brincar de futuro. Como é que é?
É assim, ela disse. Imagine por exemplo que você está casado com Norma.
Sim, eu disse, estou casado com Norma. E daí?
Suponha que ela engane você.
Olhe aqui, garotinha, eu.
Espere. Suponha.
Ela nunca me enganaria.
Aí é que você se engana.
Como assim?
Você nunca notou, imbecil, ela não existe, nem nunca existiu?

8

Antes da matéria, existia uma coisa antes da matéria, antes da memória, assim como antes de todas as histórias sempre existe uma história. Difícil comparar a matéria com o que existia antes, impossível comparar esta história com as histórias que existiram antes. Gasosa, líquida, sólida, a matéria é muito pobre de estados em comparação com o que existia antes. O que existia antes era, ao mesmo tempo, muito mais simples e muito mais complicado, se é que me exprimo bem. Afinal, as histórias de antes também eram mais simples e mais complicadas. Mas sobre a coisa que existia antes da matéria, não ficaram histórias. Essa menina precisava levar umas palmadas.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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