1
Dei
o braço a Norma e descemos a escada com a elegância que uma pedra
de gelo exige para voltar a ser água.
Descemos
a escada toda, sob pesado bombardeio de aplausos. Pensei que ia
morrer de tanto amor, Norma estava divina. E se distribuiu pela sala,
como se fosse um saco de moedas repartidas entre os pobres.
O
mordomo se aproximou, com o que mesmo na mão?
Me
adiantei.
— Já
sei, já sei, telefone pra mim.
Ele
foi gentil, já que era pago para isso.
— Não
sei como o senhor adivinhou.
2
Era
um papo comprido sobre os warhoos e os seres gasosos dos pantanais de
Canopus, que eu já não tinha mais saco pra aguentar. Que se fodam
os quartzos de Randôri, os burlemarx de noigandres, os odradex de
Íon. Tinha mais a fazer que ficar escutando os despropósitos de uma
birutinha, que rondava a festa como uma fera esperando a vítima
acabar de morrer.
3
Por
que é que não tive uma irmã? Por que é que cresci com alguém que
acordava se olhando no espelho, pintando os olhos, ajeitando o
cabelo, mordendo os lábios até ficarem em brasa como uma maçã
madura?
Agora
era tarde. Já estávamos na função lambda.
4
Recompondo
a cena do crime. Eu estava ali com o telefone em uma mão e a faca na
outra. A vítima flutuava numa poça de sangue. O pescoço tinha
recebido um corte de orelha a orelha, que deixava à mostra as cordas
vocais, onde um dó maior com quinta aumentada ainda vibrava ao
vento.
O
inspetor perguntou:
— Quantas
testemunhas?
Os
criados em coro:
— Todos
nós, senhor.
E
para mim:
— O
senhor quer ter a bondade de me entregar essa faca ensanguentada?
— Ora,
inspetor, esta faca está toda suja do sangue desta moça. Deixe eu
apanhar uma limpinha para o senhor.
— Não,
eu adoro facas ensanguentadas. Fico com essa aí mesmo.
Ah,
Norma Propp, se você soubesse tudo o que eu sinto por você.
5
— Se
alguém tem alguma coisa a dizer contra este casamento, fale agora ou
cale-se para sempre.
E
todos realizaram aquele nosso mais fundo desejo infantil.
Um
gritou:
— Eu
tenho, reverendo! Essa mulher é uma vagabunda!
— Ela
trepou com o noivo antes do casamento!
— Ela
já é casada!
— Ela
tem um amante!
— Ela
cobra um absurdo pra chupar um pau!
Foi
com muita fleugma que virei a cabeça para olhar a massa dos fiéis,
donde saíam aquelas vozes.
Nisso,
uma voz gritou:
— Esse
cara é viado!
— A
mãe dele está na zona!
— Vi
ele de sacanagem com a menininha lá fora!
— Ele
tem filho com tudo quanto é mulher!
Enquanto
diziam aquelas coisas da minha noiva, eu ainda podia tolerar. Mas
essa súbita mudança da fortuna, desviando a artilharia de
impropérios para cima da minha pessoa, era intolerável. Localizei o
cara, e gritei, que ecoou na igreja toda:
— Viado
é a puta que o pariu!
E
parti pra cima. Enfiei a aliança no mindinho da mão direita, e já
cheguei batendo. A primeira porrada com a aliança acertou em cima do
olho direito, e espirrou sangue. O filho do cara me agarrou por trás,
e eu fiz ele ajoelhar contrito com uma cotovelada no saco.
O
padre pulou como um tigre, e gritou para o sacristão:
— Protege
o Santíssimo, o cibório, o ostensório, o turíbulo, o cálice e a
patena, que eu vou mostrar a esses filhos da puta o que acontece pra
quem não respeita a Casa do Senhor.
Arregaçou
a batina, e veio com tudo. Não deu para eu me virar a tempo, e o
homem de Deus me acertou um pontapé nos rins, que doeu que nem um
gole de gim puro em jejum. Rolei no meio das pernas de umas velhas,
que caíram para trás, o primeiro banco derrubou o segundo, que
derrubou o terceiro, e assim até a entrada da igreja, como se fossem
pedras de dominó.
Do
alto do púlpito, o sacristão bombardeava a balbúrdia com hóstias,
galhetas de vinho, mitras episcopais, versos em latim, gritando sem
parar:
— Mas
que diabo de casamento é esse?
6
Telefone
grudado na orelha pra abafar a algazarra da festa, perguntei, de saco
cheio:
— E
daí?, que foi que os seres gasosos dos pantanais de Canopus fizeram?
7
— Vamos
brincar de futuro?
Só
me faltava mais essa. Bem agora que já estava quase na porta de
Norma, me aparece, bem, vocês sabem quem.
Produzi
a cara mais puta da vida que eu tinha no estoque de caras para essas
horas quando uma garotinha pentelha chega pra você e diz:
— Vamos
brincar de futuro? Contei 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 1 de novo, 2, e
disse:
— Puxa,
como é que você adivinhou? Eu adoro brincar de futuro. Como
é que é?
— É
assim, ela disse. Imagine por exemplo que você está casado com
Norma.
— Sim,
eu disse, estou casado com Norma. E daí?
— Suponha
que ela engane você.
— Olhe
aqui, garotinha, eu.
— Espere.
Suponha.
— Ela
nunca me enganaria.
— Aí
é que você se engana.
— Como
assim?
— Você
nunca notou, imbecil, ela não existe, nem nunca existiu?
8
Antes
da matéria, existia uma coisa antes da matéria, antes da memória,
assim como antes de todas as histórias sempre existe uma história.
Difícil comparar a matéria com o que existia antes, impossível
comparar esta história com as histórias que existiram antes.
Gasosa, líquida, sólida, a matéria é muito pobre de estados em
comparação com o que existia antes. O que existia antes era, ao
mesmo tempo, muito mais simples e muito mais complicado, se é que me
exprimo bem. Afinal, as histórias de antes também eram mais simples
e mais complicadas. Mas sobre a coisa que existia antes da
matéria, não ficaram histórias. Essa menina precisava levar umas
palmadas.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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