O
homem do sorriso resplandecente chamava-se Bienvenue Ambrosio
Fortunato. Pouca gente o conhecia por tal nome. No final dos anos
sessenta compôs um bolero intitulado Papy Bolingô. O tema,
interpretado por François Luambo Luanzo Makiadi, o grande Franco,
obteve sucesso imediato, tocando dia e noite nas rádios de Kinshasa,
e o jovem guitarrista ganhou um apelido que o acompanharia pela vida
fora. Aos vinte e poucos anos, perseguido pelo regime do senhor
Joseph-Désiré Mobutu, aliás Mobutu Sese Seko Nkuku Ngbendu wa Za
Banga, Papy Bolingô exilou-se em Paris. Trabalhou primeiro como
porteiro num clube noturno e, mais tarde, como guitarrista na
orquestra de um circo. Foi em França, em contacto com a pequena
comunidade angolana, que redescobriu o país dos seus ancestrais.
Assim que Angola se tornou independente, fez as malas e embarcou para
Luanda. Atuava em casamentos e noutras festas privadas frequentadas
por angolanos retornados do Zaire, e puros langas saudosos da pátria.
O difícil pão de cada dia conquistava-o a trabalhar como sonoplasta
na Rádio Nacional. Estava de serviço na manhã de 27 de
maio, quando os revoltosos entraram no edifício. Assistiu, depois, à
chegada dos soldados cubanos, os quais colocaram rapidamente ordem na
casa, à bofetada e ao pontapé, retomando o controlo da emissão.
Ao
sair, muito perturbado com os acontecimentos, viu um caminhão
militar abalroar um carro. Correu para socorrer os ocupantes.
Reconheceu imediatamente um dos feridos, um sujeito roliço, de
braços fortes e curtos, que certa ocasião o interpelara na rádio.
Reparou a seguir no jovem alto, magro como uma múmia, com os pulsos
unidos por algemas. Não hesitou. Ajudou o jovem a erguer-se,
cobriu-lhe as mãos com o casaco, e levou-o para o seu apartamento.
Porque
me ajudou?
Repetiu
esta pergunta, vezes sem conta, durante os quatro anos em que esteve
escondido no apartamento do sonoplasta. O amigo raramente respondia.
Soltava uma ampla gargalhada de homem livre, abanava a cabeça,
desviava a conversa. Um dia encarou-o com firmeza:
O
meu pai era padre. Foi um bom padre, e um excelente pai. Até hoje
desconfio dos padres sem filhos. Como é possível ser padre, não
sendo pai? O meu ensinou-nos a ajudar os fracos. Naquela ocasião,
quando o vi estendido no passeio, você me pareceu bem fraquito. Além
disso, reconheci um dos polícias, um oficial da segurança, que
havia estado no meu serviço a interrogar pessoas. Não gosto de
polícias do pensamento. Nunca gostei. Então fiz o que a minha
consciência me ordenou.
Pequeno
Soba permaneceu longos meses escondido. Após a morte do primeiro
presidente, o regime ensaiou uma tímida abertura. Os presos
políticos, não ligados à oposição armada, foram libertados.
Alguns receberam convites para ocupar posições no aparelho do
Estado. Ao sair para as ruas da capital, entre assustado e curioso,
Pequeno Soba descobriu que quase toda a gente o julgava morto. Alguns
amigos asseguravam mesmo ter assistido ao enterro. Certos
companheiros de luta pareciam até um pouco desiludidos por o
reencontrarem tão vivo. Madalena, essa, recebeu-o com alegria. Nos
últimos anos criara uma organização não governamental, a Sopa de
Pedra, apostada em melhorar a dieta das populações dos musseques
luandenses. Percorria os bairros mais pobres da capital, ensinando as
mamãs a alimentarem os filhos, o melhor possível, com os magros
recursos disponíveis.
Pode-se
comer melhor sem gastar mais, explicou a Pequeno Soba:
Tu
e os teus amigos enchem a boca com palavras grandes, Justiça
Social, Liberdade, Revolução, e entretanto as pessoas definham,
adoecem, muitas morrem. Discursos não alimentam. O que o povo
precisa é de legumes frescos e de um bom muzonguê, ao menos uma vez
por semana. Só me interessam as revoluções que começam por sentar
o povo à mesa.
O
jovem entusiasmou-se. Passou a acompanhar a enfermeira, a troco de um
ordenado simbólico, três refeições por dia, cama e roupa lavada.
Entretanto, rolaram anos. Caíram muros. Veio a paz, realizaram-se
eleições, a guerra regressou. O sistema socialista foi
desmantelado, pelas mesmas pessoas que o haviam erguido, e o
capitalismo ressurgiu das cinzas, mais feroz do que nunca. Sujeitos
que, havia ainda poucos meses, bramiam em almoços de família, em
festas, em comícios, em artigos nos jornais, contra a democracia
burguesa, passeavam-se agora muito bem vestidos, com roupas de marca,
dentro de veículos refulgentes.
Pequeno
Soba deixara alongar-se sobre o magro peito uma áspera barba de
profeta. Continuava elegantíssimo, e, apesar da barba, mantinha um
ar juvenil. Contudo, começara a andar levemente inclinado para a
esquerda, como se o empurrasse, por dentro, um violento vendaval.
Certa tarde, vendo desfilar os carros dos ricos, lembrou-se dos
diamantes. Seguindo o conselho de Papy Bolingô, deslocou-se ao
mercado Roque Santeiro. Levava um nome anotado num papel. Pensou,
enquanto se deixava arrastar pela multidão, que seria impossível
localizar alguém entre a imensidão do caos. Receou nunca mais
conseguir sair. Estava enganado. O primeiro feirante a quem se
dirigiu apontou-lhe uma direção. Um outro, metros adiante,
confirmou-a. Decorridos quinze minutos detinha-se diante de uma
barraca em cuja porta alguém pintara, em traços toscos, o busto de
uma mulher, de longo pescoço, iluminado por um colar de diamantes.
Bateu. Recebeu-o um homem delgado, vestido com casaco e calças
cor-de-rosa, gravata e chapéu de um vermelho-vivo. Os sapatos, muito
polidos, resplendeciam na penumbra. Pequeno Soba lembrou-se dos
sapeur que Papy Bolingô lhe apresentara, anos antes, durante
uma breve visita a Kinshasa. Sapeur é o nome que se dá no
Congo aos maníacos da moda. Sujeitos que se vestem com roupas caras
e vistosas, gastando tudo o que têm, e o que não têm, para depois
se passearem pelas ruas como modelos numa passarela.
Entrou.
Viu uma secretária e duas cadeiras. Uma ventoinha, presa ao teto,
agitava, em remadas lentas, o ar encharcado.
Jaime
Panguila, apresentou-se o sapeur, convidando-o a sentar-se.
Panguila
interessou-se pelas pedras. Observou-as primeiro à luz de um
candeeiro. A seguir, aproximou-se da janela, descerrou a cortina, e
estudou-as, rodando-as entre os dedos, sob os duros raios de um sol
quase a pique. Por fim, sentou-se:
As
pedras, embora pequenas, são boas, muito puras. Nem quero saber como
as conseguiu. Arrisco-me a ter problemas ao tentar comercializá-las.
Não lhe posso oferecer mais de sete mil dólares.
Recusou.
Panguila duplicou a oferta. Tirou um maço de notas de uma das
gavetas, colocou-as dentro de uma caixa de sapatos, e empurrou-a na
direção do outro.
Pequeno
Soba foi sentar-se num bar próximo, com a caixa de sapatos pousada
na mesa, a pensar no que faria com o dinheiro. Reparou no símbolo da
cerveja, a silhueta de um pássaro de asas abertas, e lembrou-se do
pombo. Continuava a guardar o tubo de plástico, no qual ainda se
conseguia ler, embora a custo:
Amanhã.
Seis horas, lugar habitual. Muito cuidado. Amo-te.
Quem
escrevera aquilo?
Talvez
um alto funcionário da Diamang. Imaginou um homem de rosto
severo, a rabiscar a mensagem, a colocar o bilhete no cilindro de
plástico e a prendê-lo depois à pata do pombo. Imaginou-o a enfiar
os diamantes no bico da ave, primeiro um, a seguir o outro, a
soltá-la, e esta a voar, de uma vivenda entalada entre altas e
frondosas mangueiras, no Dundo, até aos perigosíssimos céus da
capital. Imaginou-a sobrevoando as florestas escuras, os rios
atónitos, os múltiplos exércitos em confronto.
Ergueu-se,
sorridente. Já sabia o que fazer com o dinheiro. Nos meses que se
seguiram criou e estruturou uma pequena empresa de entrega de
encomendas, a que chamou Pombo-Correio. Agradava-lhe a
coincidência da palavra pombo ter, em quimbundo, o significado de
mensageiro. O negócio prosperou, e a esse juntaram-se novos
projetos. Investiu em áreas diversas, da hotelaria ao imobiliário,
sempre com sucesso.
Uma
tarde de domingo, era dezembro, o ar resplandecia, encontrou-se com
Papy Bolingô no Rialto. Mandaram vir cerveja. Conversaram sem
urgência, malembelembe, estendidos no langor da tarde como numa
rede.
A
vida, Papy?
Vai-nos
vivendo.
E
você, sempre cantando?
Pouco,
meu irmão. Não tenho atuado. Fofo anda esquisito.
Papy
Bolingô fora despedido da Rádio Nacional. Vinha
sobrevivendo, muito a custo, tocando em festas. Um dos primos, guia
de caçadores, trouxe-lhe do Congo um hipopótamo-anão. O guia
encontrara o animal na floresta, ainda bebé, vigiando, desesperado,
o cadáver da mãe. O guitarrista levou o animal para o apartamento.
Alimentou-o a biberão. Ensinou-o a dançar rumba zairense. Fofo, o
hipopótamo, passou a acompanhá-lo em espetáculos montados em
pequenos bares da periferia de Luanda. Pequeno Soba assistira ao
show, em diversas ocasiões, e saíra sempre muito
impressionado. O problema é que o hipopótamo vinha crescendo
demais. Os hipopótamos-anões, ou hipopótamos-pigmeus (Choeropsis
liberiensis), parecem pequenos em comparação com os seus
parentes mais conhecidos, mas, já adultos, podem alcançar o volume
de um porco grande. No prédio cresciam os protestos dos vizinhos.
Muitos possuíam cães. Alguns insistiam em criar galinhas nas
varandas, cabras, eventualmente porcos. Nenhum tinha hipopótamos. Um
hipopótamo, ainda que artista, assustava os moradores. Alguns, ao
vê-lo na varanda, atiravam-lhe pedras.
Pequeno
Soba compreendeu que chegara a altura de ajudar o amigo.
Quanto
quer pelo apartamento? Eu preciso de um bom apartamento, no coração
da capital. Você precisa de uma quinta, um espaço grande, para
criar o hipopótamo.
Papy
Bolingô hesitou:
Estou
há tantos anos nesse apartamento. Acho que lhe ganhei afeto.
Quinhentos
mil?
Quinhentos
mil? Quinhentos mil do quê?
Eu
lhe dou quinhentos mil dólares pelo apartamento. Com esse dinheiro
você compra uma boa quinta.
Papy
Bolingô riu-se, divertido. Depois reparou no rosto sério do amigo e
interrompeu a gargalhada. Endireitou-se:
Pensei
que fosse brincadeira. Você tem quinhentos mil dólares?
Isso
e alguns milhões mais. Muitos milhões. Não estou a fazer nenhum
favor, acho um excelente investimento. O vosso prédio está bastante
degradado, mas com uma boa pintura, e elevadores novos, recupera o
charme do tempo do colono. Daqui a pouco vão começar a aparecer
compradores. Generais. Ministros. Gente com muito mais dinheiro do
que eu. Vão dar uns trocos para as pessoas saírem. Os que não
saírem a bem, terão de sair a mal.
Foi
assim que Pequeno Soba ficou com o apartamento de Papy Bolingô.
José
Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento
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