quarta-feira, 10 de abril de 2019

A sútil arquitetura do acaso

O homem do sorriso resplandecente chamava-se Bienvenue Ambrosio Fortunato. Pouca gente o conhecia por tal nome. No final dos anos sessenta compôs um bolero intitulado Papy Bolingô. O tema, interpretado por François Luambo Luanzo Makiadi, o grande Franco, obteve sucesso imediato, tocando dia e noite nas rádios de Kinshasa, e o jovem guitarrista ganhou um apelido que o acompanharia pela vida fora. Aos vinte e poucos anos, perseguido pelo regime do senhor Joseph-Désiré Mobutu, aliás Mobutu Sese Seko Nkuku Ngbendu wa Za Banga, Papy Bolingô exilou-se em Paris. Trabalhou primeiro como porteiro num clube noturno e, mais tarde, como guitarrista na orquestra de um circo. Foi em França, em contacto com a pequena comunidade angolana, que redescobriu o país dos seus ancestrais. Assim que Angola se tornou independente, fez as malas e embarcou para Luanda. Atuava em casamentos e noutras festas privadas frequentadas por angolanos retornados do Zaire, e puros langas saudosos da pátria. O difícil pão de cada dia conquistava-o a trabalhar como sonoplasta na Rádio Nacional. Estava de serviço na manhã de 27 de maio, quando os revoltosos entraram no edifício. Assistiu, depois, à chegada dos soldados cubanos, os quais colocaram rapidamente ordem na casa, à bofetada e ao pontapé, retomando o controlo da emissão.
Ao sair, muito perturbado com os acontecimentos, viu um caminhão militar abalroar um carro. Correu para socorrer os ocupantes. Reconheceu imediatamente um dos feridos, um sujeito roliço, de braços fortes e curtos, que certa ocasião o interpelara na rádio. Reparou a seguir no jovem alto, magro como uma múmia, com os pulsos unidos por algemas. Não hesitou. Ajudou o jovem a erguer-se, cobriu-lhe as mãos com o casaco, e levou-o para o seu apartamento.
Porque me ajudou?
Repetiu esta pergunta, vezes sem conta, durante os quatro anos em que esteve escondido no apartamento do sonoplasta. O amigo raramente respondia. Soltava uma ampla gargalhada de homem livre, abanava a cabeça, desviava a conversa. Um dia encarou-o com firmeza:
O meu pai era padre. Foi um bom padre, e um excelente pai. Até hoje desconfio dos padres sem filhos. Como é possível ser padre, não sendo pai? O meu ensinou-nos a ajudar os fracos. Naquela ocasião, quando o vi estendido no passeio, você me pareceu bem fraquito. Além disso, reconheci um dos polícias, um oficial da segurança, que havia estado no meu serviço a interrogar pessoas. Não gosto de polícias do pensamento. Nunca gostei. Então fiz o que a minha consciência me ordenou.
Pequeno Soba permaneceu longos meses escondido. Após a morte do primeiro presidente, o regime ensaiou uma tímida abertura. Os presos políticos, não ligados à oposição armada, foram libertados. Alguns receberam convites para ocupar posições no aparelho do Estado. Ao sair para as ruas da capital, entre assustado e curioso, Pequeno Soba descobriu que quase toda a gente o julgava morto. Alguns amigos asseguravam mesmo ter assistido ao enterro. Certos companheiros de luta pareciam até um pouco desiludidos por o reencontrarem tão vivo. Madalena, essa, recebeu-o com alegria. Nos últimos anos criara uma organização não governamental, a Sopa de Pedra, apostada em melhorar a dieta das populações dos musseques luandenses. Percorria os bairros mais pobres da capital, ensinando as mamãs a alimentarem os filhos, o melhor possível, com os magros recursos disponíveis.
Pode-se comer melhor sem gastar mais, explicou a Pequeno Soba:
Tu e os teus amigos enchem a boca com palavras grandes, Justiça Social, Liberdade, Revolução, e entretanto as pessoas definham, adoecem, muitas morrem. Discursos não alimentam. O que o povo precisa é de legumes frescos e de um bom muzonguê, ao menos uma vez por semana. Só me interessam as revoluções que começam por sentar o povo à mesa.
O jovem entusiasmou-se. Passou a acompanhar a enfermeira, a troco de um ordenado simbólico, três refeições por dia, cama e roupa lavada. Entretanto, rolaram anos. Caíram muros. Veio a paz, realizaram-se eleições, a guerra regressou. O sistema socialista foi desmantelado, pelas mesmas pessoas que o haviam erguido, e o capitalismo ressurgiu das cinzas, mais feroz do que nunca. Sujeitos que, havia ainda poucos meses, bramiam em almoços de família, em festas, em comícios, em artigos nos jornais, contra a democracia burguesa, passeavam-se agora muito bem vestidos, com roupas de marca, dentro de veículos refulgentes.
Pequeno Soba deixara alongar-se sobre o magro peito uma áspera barba de profeta. Continuava elegantíssimo, e, apesar da barba, mantinha um ar juvenil. Contudo, começara a andar levemente inclinado para a esquerda, como se o empurrasse, por dentro, um violento vendaval. Certa tarde, vendo desfilar os carros dos ricos, lembrou-se dos diamantes. Seguindo o conselho de Papy Bolingô, deslocou-se ao mercado Roque Santeiro. Levava um nome anotado num papel. Pensou, enquanto se deixava arrastar pela multidão, que seria impossível localizar alguém entre a imensidão do caos. Receou nunca mais conseguir sair. Estava enganado. O primeiro feirante a quem se dirigiu apontou-lhe uma direção. Um outro, metros adiante, confirmou-a. Decorridos quinze minutos detinha-se diante de uma barraca em cuja porta alguém pintara, em traços toscos, o busto de uma mulher, de longo pescoço, iluminado por um colar de diamantes. Bateu. Recebeu-o um homem delgado, vestido com casaco e calças cor-de-rosa, gravata e chapéu de um vermelho-vivo. Os sapatos, muito polidos, resplendeciam na penumbra. Pequeno Soba lembrou-se dos sapeur que Papy Bolingô lhe apresentara, anos antes, durante uma breve visita a Kinshasa. Sapeur é o nome que se dá no Congo aos maníacos da moda. Sujeitos que se vestem com roupas caras e vistosas, gastando tudo o que têm, e o que não têm, para depois se passearem pelas ruas como modelos numa passarela.
Entrou. Viu uma secretária e duas cadeiras. Uma ventoinha, presa ao teto, agitava, em remadas lentas, o ar encharcado.
Jaime Panguila, apresentou-se o sapeur, convidando-o a sentar-se.
Panguila interessou-se pelas pedras. Observou-as primeiro à luz de um candeeiro. A seguir, aproximou-se da janela, descerrou a cortina, e estudou-as, rodando-as entre os dedos, sob os duros raios de um sol quase a pique. Por fim, sentou-se:
As pedras, embora pequenas, são boas, muito puras. Nem quero saber como as conseguiu. Arrisco-me a ter problemas ao tentar comercializá-las. Não lhe posso oferecer mais de sete mil dólares.
Recusou. Panguila duplicou a oferta. Tirou um maço de notas de uma das gavetas, colocou-as dentro de uma caixa de sapatos, e empurrou-a na direção do outro.
Pequeno Soba foi sentar-se num bar próximo, com a caixa de sapatos pousada na mesa, a pensar no que faria com o dinheiro. Reparou no símbolo da cerveja, a silhueta de um pássaro de asas abertas, e lembrou-se do pombo. Continuava a guardar o tubo de plástico, no qual ainda se conseguia ler, embora a custo:
Amanhã. Seis horas, lugar habitual. Muito cuidado. Amo-te.
Quem escrevera aquilo?
Talvez um alto funcionário da Diamang. Imaginou um homem de rosto severo, a rabiscar a mensagem, a colocar o bilhete no cilindro de plástico e a prendê-lo depois à pata do pombo. Imaginou-o a enfiar os diamantes no bico da ave, primeiro um, a seguir o outro, a soltá-la, e esta a voar, de uma vivenda entalada entre altas e frondosas mangueiras, no Dundo, até aos perigosíssimos céus da capital. Imaginou-a sobrevoando as florestas escuras, os rios atónitos, os múltiplos exércitos em confronto.
Ergueu-se, sorridente. Já sabia o que fazer com o dinheiro. Nos meses que se seguiram criou e estruturou uma pequena empresa de entrega de encomendas, a que chamou Pombo-Correio. Agradava-lhe a coincidência da palavra pombo ter, em quimbundo, o significado de mensageiro. O negócio prosperou, e a esse juntaram-se novos projetos. Investiu em áreas diversas, da hotelaria ao imobiliário, sempre com sucesso.
Uma tarde de domingo, era dezembro, o ar resplandecia, encontrou-se com Papy Bolingô no Rialto. Mandaram vir cerveja. Conversaram sem urgência, malembelembe, estendidos no langor da tarde como numa rede.
A vida, Papy?
Vai-nos vivendo.
E você, sempre cantando?
Pouco, meu irmão. Não tenho atuado. Fofo anda esquisito.
Papy Bolingô fora despedido da Rádio Nacional. Vinha sobrevivendo, muito a custo, tocando em festas. Um dos primos, guia de caçadores, trouxe-lhe do Congo um hipopótamo-anão. O guia encontrara o animal na floresta, ainda bebé, vigiando, desesperado, o cadáver da mãe. O guitarrista levou o animal para o apartamento. Alimentou-o a biberão. Ensinou-o a dançar rumba zairense. Fofo, o hipopótamo, passou a acompanhá-lo em espetáculos montados em pequenos bares da periferia de Luanda. Pequeno Soba assistira ao show, em diversas ocasiões, e saíra sempre muito impressionado. O problema é que o hipopótamo vinha crescendo demais. Os hipopótamos-anões, ou hipopótamos-pigmeus (Choeropsis liberiensis), parecem pequenos em comparação com os seus parentes mais conhecidos, mas, já adultos, podem alcançar o volume de um porco grande. No prédio cresciam os protestos dos vizinhos. Muitos possuíam cães. Alguns insistiam em criar galinhas nas varandas, cabras, eventualmente porcos. Nenhum tinha hipopótamos. Um hipopótamo, ainda que artista, assustava os moradores. Alguns, ao vê-lo na varanda, atiravam-lhe pedras.
Pequeno Soba compreendeu que chegara a altura de ajudar o amigo.
Quanto quer pelo apartamento? Eu preciso de um bom apartamento, no coração da capital. Você precisa de uma quinta, um espaço grande, para criar o hipopótamo.
Papy Bolingô hesitou:
Estou há tantos anos nesse apartamento. Acho que lhe ganhei afeto.
Quinhentos mil?
Quinhentos mil? Quinhentos mil do quê?
Eu lhe dou quinhentos mil dólares pelo apartamento. Com esse dinheiro você compra uma boa quinta.
Papy Bolingô riu-se, divertido. Depois reparou no rosto sério do amigo e interrompeu a gargalhada. Endireitou-se:
Pensei que fosse brincadeira. Você tem quinhentos mil dólares?
Isso e alguns milhões mais. Muitos milhões. Não estou a fazer nenhum favor, acho um excelente investimento. O vosso prédio está bastante degradado, mas com uma boa pintura, e elevadores novos, recupera o charme do tempo do colono. Daqui a pouco vão começar a aparecer compradores. Generais. Ministros. Gente com muito mais dinheiro do que eu. Vão dar uns trocos para as pessoas saírem. Os que não saírem a bem, terão de sair a mal.
Foi assim que Pequeno Soba ficou com o apartamento de Papy Bolingô.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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