quinta-feira, 4 de abril de 2019

A antena rebelde

Nos primeiros meses de isolamento, Ludo raramente dispensava a segurança do guarda-chuva para visitar o terraço. Mais tarde, passou a servir-se de uma comprida caixa de cartão, na qual recortara dois orifícios, à altura dos olhos, para espreitar, e outros dois, de lado, mais abaixo, para libertar os braços. Assim equipada, podia trabalhar nos canteiros, plantando, colhendo, cortando as ervas daninhas. Vez por outra, debruçava-se sobre o terraço, estudando, com rancor, a cidade submersa. Quem olhasse para o prédio, de um outro edifício com altura semelhante, veria um caixote movendo-se, debruçando-se, voltando a recolher-se.
Nuvens cercavam a cidade, como alforrecas.
A Ludo lembravam alforrecas.
As pessoas não veem nas nuvens o desenho que elas têm, que não é nenhum, ou que são todos, pois a cada momento se altera. Veem aquilo por que o seu coração anseia.
Não vos agrada a palavra coração?
Escolham outra: alma, inconsciente, fantasia, a que acharem melhor. Nenhuma será a palavra adequada.
Ludo contemplava as nuvens e via alforrecas.
Ganhara o hábito de falar sozinha, repetindo as mesmas palavras horas a fio: Gorjeio. Pipilar. Revoada. Asa. Adejar. Gorjeio. Pipilar. Revoada. Asa. Adejar. Gorjeio. Pipilar. Revoada. Asa. Adejar. Gorjeio. Pipilar. Revoada. Asa. Adejar. Gorjeio. Pipilar. Revoada. Asa. Adejar. Gorjeio. Pipilar. Revoada. Asa. Adejar. Vocábulos bons, que se desfaziam como chocolate no céu da boca e lhe traziam à memória imagens felizes. Acreditava que ao dizê-las, ao evocá-las, regressassem aves aos céus de Luanda. Há anos que não via pombos, gaivotas, nem sequer algum pequeno passarinho despardalado. A noite trazia morcegos. O voo dos morcegos, porém, nada tem a ver com o das aves. Os morcegos, como as alforrecas, são seres sem substância. Vê-se um morcego a riscar a sombra e não se pensa nele como algo feito de carne, de sangue, de ossos concretos, de febre e sentimentos. Formas esquivas, rápidos fantasmas entre os escombros, estão ali, não estão mais. Ludo odiava morcegos. Os cães eram mais raros do que os pombos, e os gatos mais raros do que os cães. Os gatos foram os primeiros a desaparecer. Os cães resistiram nas ruas da cidade durante alguns anos. Matilhas de cães de raça. Galgos esgalgados, pesados mastins asmáticos, alegres dálmatas, nervosos perdigueiros, e depois, durante mais dois ou três anos, a improvável e deplorável mistura de tantos, e tão nobres pedigrees.
Ludo suspirou. Sentou-se de frente para a janela. Dali apenas conseguia ver o céu. Nuvens baixas, escuras, e um resto de azul quase vencido pela escuridão. Lembrou-se de Che Guevara. Costumava vê-lo, a deslizar pelas paredes, a correr pelos pátios e telhados, a procurar refúgio nos ramos mais altos da enorme mulemba. Vê-lo fazia-lhe bem. Eram seres próximos, ambos um equívoco, corpos estranhos no organismo exultante da cidade. As pessoas atiravam pedras ao macaco. Outras lançavam-lhe fruta envenenada. O animal esquivava-se. Cheirava a fruta e afastava-se com uma expressão de desgosto. Mudando ligeiramente de posição, Ludo podia contemplar as antenas parabólicas. Dezenas, centenas, milhares delas, cobrindo os telhados dos prédios, como fungos. Desde há muito tempo que as via voltadas para norte. Todas, exceto uma – a antena rebelde. Outro erro. Costumava pensar que não morreria enquanto a antena se mantivesse de costas para as companheiras. Enquanto Che Guevara sobrevivesse não morreria. Há mais de duas semanas, porém, que não avistava o macaco, e naquela madrugada, ao lançar um primeiro olhar sobre os telhados, dera com a antena voltada para norte – como as restantes. Uma escuridão densa e rumorosa, feita um rio, derramou-se sobre as vidraças. Subitamente um grande clarão iluminou tudo, e a mulher viu a própria sombra a ser atirada contra a parede. O trovão ribombou um segundo depois. Fechou os olhos. Se morresse ali, assim, naquele lúcido instante, enquanto lá fora o céu bailava, vitorioso e livre, isso seria bom. Decorreriam décadas antes que alguém a encontrasse. Pensou em Aveiro e compreendeu que deixara de se sentir portuguesa. Não pertencia a lado nenhum. Lá, onde nascera, fazia frio. Reviu as ruas estreitas, as pessoas caminhando, de cabeça baixa, contra o vento e o enfado. Ninguém a esperava.
Soube, antes de abrir os olhos, que o temporal se afastara. O céu clareara. Um raio de luz aquecia-lhe o rosto. Escutou, vindo do pátio, um gemido, um fraco queixume. Fantasma, estendido aos seus pés, ergueu-se num salto, atravessou correndo o apartamento, até à sala, subiu aos tropeções a escada em caracol e desapareceu. Ludo lançou-se atrás dele. O cão encurralara o macaco contra as bananeiras, e rosnava, ansioso, de cabeça baixa. Ludo agarrou-o pela coleira, firmemente, puxando-o para si. O pastor-alemão resistiu. Fez menção de a morder. A mulher socou-o no focinho, com a mão esquerda, uma e outra vez. Finalmente, Fantasma desistiu. Deixou-se arrastar. Prendeu-o na cozinha, fechando a porta, e regressou ao terraço. Che Guevara ainda lá estava, observando-a com claros olhos de assombro. Nunca vira em nenhum homem um olhar tão intensamente humano. Mostrava na perna direita um rasgão fundo, liso, que parecia ter sido aberto há instantes por um golpe de catana. O sangue misturava-se à água da chuva.
Ludo descascou uma banana, que trouxera da cozinha, e estendeu o braço. O macaco esticou o focinho. Sacudiu a cabeça, num gesto que podia ser de dor, ou de desconfiança. A mulher chamou-o numa voz doce:
Vem, vem, pequenino. Vem que eu cuido de ti.
O animal avançou, arrastando a perna, chorando tristemente. Ludo soltou a banana e agarrou-lhe o pescoço. Com a mão esquerda tirou a faca da cintura e enterrou-a na carne magra. Che Guevara soltou um grito, libertou-se, com a lâmina espetada na barriga, e em dois grandes saltos alcançou o muro. Estacou ali, apoiado à parede, lamentando-se, sacudindo o sangue. A mulher sentou-se no chão, exausta, também ela chorando. Ficaram assim um longo tempo, os dois, olhando um para o outro, até que começou de novo a chover. Então Ludo ergueu-se, aproximou-se do macaco, soltou a faca e cortou-lhe o pescoço.
Pela manhã, enquanto salgava a carne, Ludo reparou que a antena rebelde estava de novo voltada para Sul.
Essa, e mais três.
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

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