quinta-feira, 4 de abril de 2019

1933

Mayer Guinzburg teve finalmente de começar a trabalhar. Arranjou um emprego com o pai de Leib Kirschblum, um homem muito velho, que tinha uma pequena loja no Bom Fim, chamada “A Preferida”. Vendia miudezas: retroses, cadarços, elásticos novelos de lá, retalhos de percal, peças de lingerie.
A loja era uma espécie de porão escuro, fresco no verão, mas gelado no inverno. Entrava-se por uma porta baixa, passava-se por cestos de retalhos e chegava-se ao balcão do fundo. Lá estava Mayer Guinzburg, fitando a rua com os olhos mortiços. O pai de Leib Kirschblum ficava na caixa, cochilando; ao mais leve ruído despertava assustado: “Pronto, senhor! Queria?... Mayer! Mayer!”. — “Não é ninguém seu Kirschblum” — resmungava Mayer numa voz ácida. No inverno de 1933 o velho ficou doente; o Dr. Finkelstein proibiu-o de ir à loja. Mayer Guinzburg teve de tomar conta do armarinho; não era muito difícil, já que os fregueses eram raros.
De manhã ele abria a loja muito cedo; às vezes, a neblina que vinha da Redenção invadia o estabelecimento e, na semi-obscuridade, Mayer tinha a impressão de estar meio afogado, flutuando num mar. De vez em quando, mexia nas caixas de botões, arrumava as prateleiras. Pouco a pouco, a modorra voltava a dominá-lo e ele via, de pé sobre o balcão, muitos homenzinhos sorrindo para ele. A princípio Mayer detestava as minúsculas criaturas e tentava afugentá-las, brandindo o metro de madeira amarela. Aos poucos, porém, foi se acostumando principalmente quando notou que ouviam com atenção seus resmungos e pareciam mesmo apoiá-lo. “Aquele velho sujo: capitalista explorador.” Os homenzinhos aprovavam com a cabeça. “Se pudesse, sugava o sangue dos trabalhadores!.” Os homenzinhos aplaudiam. “É preciso lutar!.” Aplausos, aplausos. Entrava uma freguesa; os homenzinhos sumiam. Mayer vendia, de má vontade, um pedaço de elástico.
Aos poucos foi descobrindo outros habitantes na loja; atrás de uma peça de cretone morava uma aranha de corpo pequeno e patas longas e delicadas, que se movia com desenvoltura sobre a prateleira; no rodapé havia um pequeno buraco por onde assomava às vezes uma cabecinha de camundongo; e finalmente dentro de uma caixa vazia Mayer encontrou certo inseto cujo nome não sabia; era maior que uma formiga e menor que uma barata, de cor indefinida. Estes eram seus companheiros, nas longas tardes vazias.
Se o velho Kirschblum morresse” — pensa Mayer — “Eu poderia fechar a loja e começar — aqui mesmo — uma vida inteiramente nova”. O pequeno pátio dos fundos — por enquanto, um sujo lugar, cheio de caixas de papelão, pedaços de madeira e latas enferrujadas — será aproveitado. Mayer Guinzburg o liberará de toda a sujeira; e a terra que se revelar será trabalhada com carinho: virada, de maneira a enterrar a crosta velha e permitindo que aflore a matéria fresca; e semeada. Agradecida, retribuirá: logo estarão brotando, espevitadas, as espertas folhinhas. Por toda a parte, plantas; por toda a parte, menos junto ao mastro, onde Mayer Guinzburg hasteará todas as manhãs a bandeira de Nova Birobidjan. Quanto à casa, será esvaziada de toda a mercadoria; retroses, cadarços, elásticos, novelos de lã, retalhos de percal, peças de lingerie serão arrojados a uma área de cimento; acumulados em gigantesca pira, serão incendiados; e, na fumaça negra que se erguerá ao céu, Mayer Guinzburg verá sua libertação.
Nos poros da sociedade — gritará — nunca mais! Para a frente, forças produtivas! A casa será redividida; uma parte será o Palácio da Cultura; em outra funcionará o Comitê Político, em outra a redação de “A Voz de Nova Birobidjan”. Neste grande empreendimento Mayer Guinzburg terá aliados: a Camarada Aranha, o Camarada Rato e o Camarada Inseto. Mayer Guinzburg gostará da Camarada Aranha, do Camarada Rato, mas não gostará do Camarada Inseto; não saberá por que, mas não gostará. Se esforçará para gostar, mas não gostará. Fará autocrítica a respeito, mas não gostará. Talvez porque o Camarada Inseto permaneça indefinido: nem bem formiga, nem bem barata; e esta ambiguidade, Mayer Guinzburg sabe, poderá no futuro se expressar sob a forma de desvios ideológicos. De uma grande tribuna, sob o retrato de Rosa de Luxemburgo, Mayer discursará: — O Camarada Inseto incide em graves erros! Despertam-no destes sonhos alguns fregueses — raros, porém exigentes. Mayer atende-os, contrariado. “Quando chegará a hora?” — perguntava-se.
De repente. Chegou de repente, numa tarde de inverno. Ele estava sentado atrás do balcão, meio afogado no tédio, quando foi sacudido por uma espécie de choque. Levantou-se, foi até a porta e fechou-a. Voltou-se para as prateleiras e disse, com voz firme: — Iniciamos agora a construção de uma nova sociedade.
Os homenzinhos aplaudiram. Mayer tirou o casaco, arregaçou as mangas. Ia começar a limpeza do local, quando bateram à porta. A princípio ele fingiu não ouvir; mas as batidas se repetiam de maneira tão frenética que ele acabou abrindo a porta.
Era Leia, chorando.
Meu pai morreu, Mayer.
Meio ano depois se casaram.
Moacyr Scliar, in O exército de um homem só

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