Ela
mora a 500 quilômetros de distância.
Ele,
na capital.
Há
vinte anos se conhecem?
Ele
estava casado, quando a viu pela primeira vez: a irmã do seu melhor
amigo.
Ia
dar uma consultoria na cidade dela. Tem alguma coisa para fazer
naquele fim do mundo? Ora, liga pra minha irmã, ela mostrará os
melhores lugares.
Desembarcou.
Ela foi pegá-lo no hotel. O amigo se esqueceu de informar. É a
passagem da loucura pra dor: os olhos, a boca, o cabelo, o corpo
bandido… Vinte e poucos anos.
Calor
de matar. Daquelas cidades fronteiriças em que, enquanto cai geada
na região Sul e Sudeste, o sol não dá trégua. A ideia dela foi
fulminante. Vamos ao clube. É onde as coisas aconteciam em cidades
pequenas.
Comprou
uma sunga barata no caminho, e foram nadar, seu esporte favorito. É
a imagem de que ele mais se lembra: após mil metros, variando os
quatro estilos, encostou na borda, exatamente onde ela tomava sol, de
bruços, com as pernas levantadas e o olhar perdido.
Sentiu
o que os primeiros navegantes sentiram ao verem as montanhas da
costa. Observou todos os pelos, os poros, o suor.
Sim,
ela o levou ao melhor bar, ao melhor bazar, e conversaram: projetos,
sonhos. Como tinha planos… De trabalhar com portadores de síndrome
de Down, plantar coco no litoral, cursar mestrado na França, se
perder numa ilha deserta, conhecer o Vietnã, aprender chinês,
russo. Falava sem parar dos seus planos.
Durante
três dias, não se desgrudaram.
E
ela o levou ao aeroporto.
Mas
na vida deles nada mudou.
Eventualmente
apareciam as imagem dela de bruços e o olhar aflito, perdido. Como o
cartão-postal da paisagem inesquecível de uma viagem de trabalho.
Um
dia foi com a mulher visitar o amigo, onde a irmã estava hospedada —
veio do interior conhecer o sobrinho.
Passaram
a tarde se olhando, distantes. Amor proibido. Bandido. Contido.
Quando
a mulher não estava por perto, trocaram sorrisos e brincaram juntos
com o bebê. Não trocaram muitas palavras. O amigo sacou os olhares
cruzados, o brilho, o encanto invisível. Deu uma dura neles. A
mulher voltou.
Ele
foi embora sem saber dos novos planos dela.
Ele
se separou. Meses num estado de letargia, susto, medo, até o amigo o
convidar para passar o réveillon no interior. Dirigiram 500
quilômetros. Buscaram ânimo ouvindo Ronnie Von, que marcou a
adolescência.
Reencontrou
a irmã. Mas o desencanto de um casamento falido o deixava sem
inspiração, sem assunto, sem cor. Ela falava de outros planos, de
aprender tupi, passar um ano numa aldeia indígena, estudar os peixes
da Amazônia. E nele, silêncio.
Minutos
antes da passagem de ano, na varanda da casa, a sós, ela lhe deu um
beijo. Longo, secreto. Solidário, reconfortante. Suas línguas se
conheceram. Ele chorou, e um ano se foi.
Pouco
a pouco, ele saía da hibernação. Teve casos. Com uma modelo, uma
aeromoça, uma veterinária, uma prima de terceiro grau e uma
ex-metalúrgica, depois vereadora.
Reencontrou-a
na capital. Ela veio conhecer o segundo sobrinho. E conheceu a nova
casa do novo homem solteiro. Ele nem esperou que ela sentasse para
falar de planos. Agarrou já na porta. Surpresa. Jogou-a no sofá,
foi arrancando roupas. Mas ela escapuliu. Tentou de novo, e ela quis
ver a vista, fumar um cigarro, beber um vinho. Ele tentou mais uma
vez. Ela escorregou. Não quis. Não cedeu. Ele, confuso.
Ela
se foi, deixando a garrafa fechada.
Voltou
para a fronteira.
Soube
que ela se casou e teve um filho.
Ele
teve namoros. Chegou a ficar noivo de uma bailarina e desistiu —
detestava balé! Conheceu neuróticas, ciumentas, galinhas. Levou pés
e deu outros.
E
se esqueceu dela.
Mas
toda a vez que ouvia o nome daquela cidade do fim do mundo, lembrava
e lamentava.
Até
o enviarem para outra consultoria. Seu amigo nem era mais o melhor
amigo. Mandou um e-mail perguntando pela irmã. Ele disse que ela se
separara e deu o celular dela.
Ele
ligou.
Ela,
feliz com a notícia.
Falou
do filho, avisou que estava sol e calor, e que teria bastante tempo
para ficar com ele, pois dava aulas de português numa escola fechada
por causa do surto de gripe. Ela estava com quantos anos agora?
A
cidade estava mudada. O Brasil da fronteira agrícola. Ela, não.
Incrível. O tempo não passa? Jantaram no novo árabe. Muitos árabes
se instalaram por lá. Árabes, chineses, coreanos. Cruzaram a pé a
praça agitada. Ela ligou para a mãe, para saber se estava tudo bem
com o filho.
Falou
de outros planos, de mexer com artesanato de material reciclado, de
parar de fumar, morar numa praia deserta, montar uma ONG, conhecer
ruínas astecas e aprender árabe.
Voltaram
juntos para o hotel — ela parara o carro na garagem do subsolo.
Entraram
juntos no lobby.
Entraram
juntos no elevador.
Ela
não apertou o SS.
Ele
apertou o andar dele.
Entraram
no quarto.
Ela
abriu a janela, admirou a vista. Ele a agarrou, deu um beijo. Ela
riu. Seu beijo está diferente. Como? Parece o beijo afoito de um
adolescente; antes, era um beijo mais maduro. Que estranho, ele
pensou. Envelheceu e ganhou medos? A maturidade traz insegurança?
Traz traumas.
Foram
para a cama. Mas ela achava precipitado. Ele tirou a roupa. Ela não
queria. Até, sem querer, ele falar uma baixaria, como costumava
fazer com a indiana, a aeromoça, a veterinária, a prima de terceiro
grau, a ex-metalúrgica, atual deputada federal, a bailarina e
especialmente com as neuróticas. Viu nela um olhar que não
conhecia. Sentiu sua boca dilatar. Falou outra baixaria. Ela subiu em
cima dele e tremeu toda. Falou as coisas mais censuráveis. Ela tirou
a roupa. Esgotou o seu repertório de vulgaridades. Amaram-se dois
dias seguidos.
Conseguiu
rever o corpo, outro agora, de quarenta anos, mas o mesmo ainda.
Experimentou cada fração, cada dobra e detalhes.
No
dia da partida, passearam com o filho. Tiraram fotos. Foram à feira,
ao parque, à sorveteria. Viram pastagens e plantações de cana,
laranja, café.
Levou-o
ao aeroporto.
Na
despedida, ele disse: “Merecemos esse reencontro, precisávamos
dele.”
Ela
disse: “Será que só daqui a dez anos vamos nos rever?”
No
trânsito de São Paulo… E se eu me casar com ela? Ela já pensou
em mexer com artesanato de material reciclado, morar numa praia
deserta, montar uma ONG, conhecer ruínas astecas, aprender árabe,
chinês, russo, tupi, passar um ano numa aldeia indígena, estudar os
peixes da Amazônia, trabalhar com portadores de síndrome de Down,
plantar coco no litoral, cursar mestrado na França, se perder numa
ilha deserta, conhecer o Vietnã… Morar aqui na capital nunca
esteve nos seus planos?
Na
verdade, vive de planos. Nunca abandona a fronteira.
Então,
decidiu. Vou convidá-la para passar o próximo fim de semana comigo.
Ou este amor contido, que arrasta mas me devolve a vida, não deve
ser concluído? Melhor não. Assim, quem sabe, ele dura a vida toda.
Marcelo
Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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