segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Pra ser só minha mulher

Ela mora a 500 quilômetros de distância.
Ele, na capital.
Há vinte anos se conhecem?
Ele estava casado, quando a viu pela primeira vez: a irmã do seu melhor amigo.
Ia dar uma consultoria na cidade dela. Tem alguma coisa para fazer naquele fim do mundo? Ora, liga pra minha irmã, ela mostrará os melhores lugares.
Desembarcou. Ela foi pegá-lo no hotel. O amigo se esqueceu de informar. É a passagem da loucura pra dor: os olhos, a boca, o cabelo, o corpo bandido… Vinte e poucos anos.
Calor de matar. Daquelas cidades fronteiriças em que, enquanto cai geada na região Sul e Sudeste, o sol não dá trégua. A ideia dela foi fulminante. Vamos ao clube. É onde as coisas aconteciam em cidades pequenas.
Comprou uma sunga barata no caminho, e foram nadar, seu esporte favorito. É a imagem de que ele mais se lembra: após mil metros, variando os quatro estilos, encostou na borda, exatamente onde ela tomava sol, de bruços, com as pernas levantadas e o olhar perdido.
Sentiu o que os primeiros navegantes sentiram ao verem as montanhas da costa. Observou todos os pelos, os poros, o suor.
Sim, ela o levou ao melhor bar, ao melhor bazar, e conversaram: projetos, sonhos. Como tinha planos… De trabalhar com portadores de síndrome de Down, plantar coco no litoral, cursar mestrado na França, se perder numa ilha deserta, conhecer o Vietnã, aprender chinês, russo. Falava sem parar dos seus planos.

Durante três dias, não se desgrudaram.
E ela o levou ao aeroporto.
Mas na vida deles nada mudou.
Eventualmente apareciam as imagem dela de bruços e o olhar aflito, perdido. Como o cartão-postal da paisagem inesquecível de uma viagem de trabalho.

Um dia foi com a mulher visitar o amigo, onde a irmã estava hospedada — veio do interior conhecer o sobrinho.
Passaram a tarde se olhando, distantes. Amor proibido. Bandido. Contido.
Quando a mulher não estava por perto, trocaram sorrisos e brincaram juntos com o bebê. Não trocaram muitas palavras. O amigo sacou os olhares cruzados, o brilho, o encanto invisível. Deu uma dura neles. A mulher voltou.
Ele foi embora sem saber dos novos planos dela.

Ele se separou. Meses num estado de letargia, susto, medo, até o amigo o convidar para passar o réveillon no interior. Dirigiram 500 quilômetros. Buscaram ânimo ouvindo Ronnie Von, que marcou a adolescência.
Reencontrou a irmã. Mas o desencanto de um casamento falido o deixava sem inspiração, sem assunto, sem cor. Ela falava de outros planos, de aprender tupi, passar um ano numa aldeia indígena, estudar os peixes da Amazônia. E nele, silêncio.
Minutos antes da passagem de ano, na varanda da casa, a sós, ela lhe deu um beijo. Longo, secreto. Solidário, reconfortante. Suas línguas se conheceram. Ele chorou, e um ano se foi.

Pouco a pouco, ele saía da hibernação. Teve casos. Com uma modelo, uma aeromoça, uma veterinária, uma prima de terceiro grau e uma ex-metalúrgica, depois vereadora.

Reencontrou-a na capital. Ela veio conhecer o segundo sobrinho. E conheceu a nova casa do novo homem solteiro. Ele nem esperou que ela sentasse para falar de planos. Agarrou já na porta. Surpresa. Jogou-a no sofá, foi arrancando roupas. Mas ela escapuliu. Tentou de novo, e ela quis ver a vista, fumar um cigarro, beber um vinho. Ele tentou mais uma vez. Ela escorregou. Não quis. Não cedeu. Ele, confuso.
Ela se foi, deixando a garrafa fechada.

Voltou para a fronteira.

Soube que ela se casou e teve um filho.
Ele teve namoros. Chegou a ficar noivo de uma bailarina e desistiu — detestava balé! Conheceu neuróticas, ciumentas, galinhas. Levou pés e deu outros.
E se esqueceu dela.
Mas toda a vez que ouvia o nome daquela cidade do fim do mundo, lembrava e lamentava.

Até o enviarem para outra consultoria. Seu amigo nem era mais o melhor amigo. Mandou um e-mail perguntando pela irmã. Ele disse que ela se separara e deu o celular dela.
Ele ligou.
Ela, feliz com a notícia.
Falou do filho, avisou que estava sol e calor, e que teria bastante tempo para ficar com ele, pois dava aulas de português numa escola fechada por causa do surto de gripe. Ela estava com quantos anos agora?

A cidade estava mudada. O Brasil da fronteira agrícola. Ela, não. Incrível. O tempo não passa? Jantaram no novo árabe. Muitos árabes se instalaram por lá. Árabes, chineses, coreanos. Cruzaram a pé a praça agitada. Ela ligou para a mãe, para saber se estava tudo bem com o filho.
Falou de outros planos, de mexer com artesanato de material reciclado, de parar de fumar, morar numa praia deserta, montar uma ONG, conhecer ruínas astecas e aprender árabe.
Voltaram juntos para o hotel — ela parara o carro na garagem do subsolo.
Entraram juntos no lobby.
Entraram juntos no elevador.
Ela não apertou o SS.
Ele apertou o andar dele.
Entraram no quarto.
Ela abriu a janela, admirou a vista. Ele a agarrou, deu um beijo. Ela riu. Seu beijo está diferente. Como? Parece o beijo afoito de um adolescente; antes, era um beijo mais maduro. Que estranho, ele pensou. Envelheceu e ganhou medos? A maturidade traz insegurança? Traz traumas.
Foram para a cama. Mas ela achava precipitado. Ele tirou a roupa. Ela não queria. Até, sem querer, ele falar uma baixaria, como costumava fazer com a indiana, a aeromoça, a veterinária, a prima de terceiro grau, a ex-metalúrgica, atual deputada federal, a bailarina e especialmente com as neuróticas. Viu nela um olhar que não conhecia. Sentiu sua boca dilatar. Falou outra baixaria. Ela subiu em cima dele e tremeu toda. Falou as coisas mais censuráveis. Ela tirou a roupa. Esgotou o seu repertório de vulgaridades. Amaram-se dois dias seguidos.
Conseguiu rever o corpo, outro agora, de quarenta anos, mas o mesmo ainda. Experimentou cada fração, cada dobra e detalhes.

No dia da partida, passearam com o filho. Tiraram fotos. Foram à feira, ao parque, à sorveteria. Viram pastagens e plantações de cana, laranja, café.
Levou-o ao aeroporto.
Na despedida, ele disse: “Merecemos esse reencontro, precisávamos dele.”
Ela disse: “Será que só daqui a dez anos vamos nos rever?”

No trânsito de São Paulo… E se eu me casar com ela? Ela já pensou em mexer com artesanato de material reciclado, morar numa praia deserta, montar uma ONG, conhecer ruínas astecas, aprender árabe, chinês, russo, tupi, passar um ano numa aldeia indígena, estudar os peixes da Amazônia, trabalhar com portadores de síndrome de Down, plantar coco no litoral, cursar mestrado na França, se perder numa ilha deserta, conhecer o Vietnã… Morar aqui na capital nunca esteve nos seus planos?
Na verdade, vive de planos. Nunca abandona a fronteira.
Então, decidiu. Vou convidá-la para passar o próximo fim de semana comigo. Ou este amor contido, que arrasta mas me devolve a vida, não deve ser concluído? Melhor não. Assim, quem sabe, ele dura a vida toda.
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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