Jéssica
tinha 16 anos quando ficou grávida.
É
melhor tirar, disse a mãe dela. Você sabe quem é o pai?
Jéssica
não sabia. Respondeu, não interessa quem é o pai, são todos uns
merdas.
Combinaram
que iam fazer o aborto na casa da mãe de santo d. Gertrudes, que
fazia todos os partos e abortos daquela comunidade.
D.
Gertrudes era uma mulher gorda, muito gorda, preta, muito preta, e
suas rezas para afugentar os maus espíritos eram extremamente
eficazes. D. Gertrudes fazia esconjurações, proferindo imprecações
e rogando pragas misturadas com bênçãos; fazia orações contra o
quebranto e o mau-olhado; orações contra os espíritos obsessivos;
orações para fechar o corpo contra todos os males; orações para
exorcizar o demônio. E tinha uma oração especial, a Oração da
Cabra Preta.
Na
véspera de realizar o aborto, Jéssica falou com a mãe que havia
decidido ter o filho e que se fosse menino ia se chamar Maicon e se
fosse menina, Daiana.
Vai
ter o filho?
Vou.
Ficou
maluca. Como é que você vai criar?
Qual
o problema? Se der muito trabalho eu posso dar o bebê, ou melhor,
posso vender. Tem um monte de gente interessada em comprar bebês. A
Kate vendeu o bebê, você sabia?
Vendeu?
Vendeu.
Mas não conta para ninguém. Ela me pediu segredo.
Naquele
mesmo dia a mãe de Jéssica, d. Benedita, foi procurar a Kate.
Quando
d. Benedita falou sobre a venda do bebê, Kate ficou branca.
O
pessoal não pode saber, pelo amor de Deus, o pessoal não pode
saber.
Por
quê? Qual o problema?
Eu
não disse lá em casa que tinha vendido, disse que tinha dado.
Fiquei com o dinheiro só para mim, se o meu pai e a minha mãe
souberem vão me encher de porrada.
Quanto
lhe pagaram?
Não
digo, não digo.
Quem
comprou?
Chega,
d. Benedita.
Kate
se afastou correndo.
D.
Benedita não desistiu. Foi procurar a mãe de santo d. Gertrudes e
disse que queria fazer Kate lhe contar quem havia comprado o seu
bebê.
Misifia,
isso é coisa de Satanás, disse d. Gertrudes, é preciso uma oração
contra o demônio. Deve-se repetir muitas vezes, misifia.
D.
Gertrudes fez repetidas vezes o sinal da cruz e começou a orar em
voz alta:
Eu,
como criatura de Deus, feita à Sua semelhança e remida com o Seu
santíssimo sangue, vos ponho preceito, demônio ou demônios, para
que cessem os vossos delírios, para que esta criatura não seja
jamais por vós atormentada com as vossas fúrias infernais. Pois o
nome do Senhor é forte e poderoso, por quem eu vos cito e notifico,
que vos ausenteis deste lugar que Deus Nosso Senhor vos destinar;
porque com o nome de Jesus vos piso e rebato e vos aborreço do meu
pensamento para fora. O Senhor esteja comigo e com todos nós,
ausentes e presentes, para que tu, demônio, não possas jamais
atormentar as criaturas do Senhor. Amarro-vos com as cadeias de São
Paulo e com a toalha que limpou o santo rosto de Jesus Cristo para
que jamais possais atormentar os viventes.
Depois
de recitar a sua oração, d. Gertrudes rodopiou pela sala e caiu no
chão, desmaiada.
D.
Benedita voltou a se encontrar com Kate, que, como se estivesse em
transe, lhe contou quem comprara o bebê, a quantia, tudo.
Mas
d. Benedita não disse isso para Jéssica. Estava decidida a vender o
bebê ela mesma, pois precisava de dinheiro para comprar uma
dentadura.
O
tempo foi passando e a barriga de Jéssica crescendo. Jéssica era
uma menina miúda, raquítica, não chegava a ter um metro e meio de
altura, mas a sua barriga era imensa, e as pessoas diziam que nunca
tinham visto uma barriga daquele tamanho.
É
menino, dizia Jéssica, e vai ser grandão, grandão e bonito, vocês
vão ver.
Jéssica
foi se arrastando ao cafofo de d. Gertrudes para ser examinada.
Vai
ser amanhã, disse d. Gertrudes. Venha preparada.
Jéssica
dormiu mal aquela noite, pensando no filho. Não ia vender o bebê,
queria lhe dar de mamar, seus peitos já estavam cheios de leite.
No
dia seguinte, levando um pequeno cobertor e um lençol rendado para
agasalhar o bebê, Jéssica foi para a casa de d. Gertrudes.
D.
Benedita fez questão de acompanhá-la. Seu plano era pegar o bebê
imediatamente após o parto e sair correndo com ele debaixo do braço
para se encontrar com o comprador de bebês, com quem ela já havia
combinado tudo. Ela também havia levado panos para envolver o bebê.
O
parto correu normal. O bebê nasceu, era menino. D. Benedita
imediatamente olhou o bebê e saiu correndo da casa de d. Gertrudes.
Mas
d. Benedita saiu correndo sem levar o bebê. Saiu sozinha com o olho
arregalado como se Satanás tivesse entrado no seu corpo.
D.
Gertrudes envolveu o bebê nos panos que Jéssica trouxera.
Pode
levar o bebê para casa, disse d. Gertrudes.
Jéssica
então olhou o filho. Não disse uma palavra. Pegou o bebê envolto
no cobertor e no pequeno lençol de renda e saiu da casa de d.
Gertrudes.
Foi
caminhando lentamente pela rua até que encontrou a primeira lata de
lixo grande. Então jogou o bebê na lata de lixo.
O
bebê era aleijado. Só tinha um braço. Ela não ia dar de mamar nem
ninguém ia querer comprar aquela coisa.
Rubem
Fonseca, in Amálgama
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