O
definível está me cansando um pouco. Prefiro a verdade que há no
prenúncio. Quando eu me livrar dessa história, voltarei ao domínio
mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios. Eu não inventei
essa moça. Ela forçou de dentro de mim a sua exigência. Ela não
era nem de longe débil mental, era à mercê e crente como uma
idiota. A moça que pelo menos comida não mendigava, havia toda uma
subclasse de gente mais perdida e com fome. Só eu a amo. Depois –
ignora-se por quê – tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio
de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e ela,
agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais
quatro moças balconistas das Lojas Americanas.
O
quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre
as prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de
cimento em pó, não longe do cais do porto. O cais imundo dava-lhe
saudade do futuro. (O que é que há? Pois estou como que ouvindo
acordes de piano alegre – será isto o símbolo de que a vida da
moça iria ter um futuro esplendoroso? Estou contente com essa
possibilidade e farei tudo para que esta se torne real).
Rua
do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que
não piso pois tenho horror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço da
vida imunda.
Uma
vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a
vida e ela se lembrava nostálgica do sertão. Onde caberia um galo a
cocoricar naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado de
exportação e importação? (Se o leitor possui alguma riqueza e
vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro.
Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para
quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa
válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei
que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta.
Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser
uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido
floração. Minto: ela era capim).
Dos
verões sufocantes da abafada rua do Acre ela só sentia o suor, um
suor que cheirava mal. Esse suor me parece de má origem. Não sei se
estava tuberculosa, acho que não. No escuro da noite um homem
assobiando e passos pesados, o uivo do vira-lata abandonado. Enquanto
isso – as constelações silenciosas e o espaço que é tempo que
nada tem a ver com ela e conosco. Pois assim se passavam os dias. O
cantar de galo na aurora sanguinolenta dava um sentido fresco à sua
vida murcha. Havia de madrugada uma passarinhada buliçosa na rua do
Acre: é que a vida brotava no chão, alegre por entre pedras.
Rua
do Acre para morar, rua do Lavradio para trabalhar, cais do porto
para ir espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio
cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração, um ou
outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo. Era do nunca
que vinha o galo. Vinha do infinito até a sua cama, dando-lhe
gratidão. Sono superficial porque estava há quase um ano resfriada.
Tinha acesso de tosse seca de madrugada: abafava-a com o travesseiro
ralo. Mas as companheiras do quarto – Maria da Penha, Maria
Aparecida, Maria José e Maria apenas – não se incomodavam.
Estavam cansadas demais pelo trabalho que nem por ser anônimo era
menos árduo. Uma vendia pó-de-arroz Coty, mas que ideia. Elas
viravam para o outro lado e readormeciam. A tosse da outra até que
as embalava em sono mais profundo. O céu é para baixo ou para cima?
Pensava a nordestina. Deitada, não sabia. Às vezes antes de dormir
sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O
remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir.
É.
Eu me acostumo mas não amanso. Por Deus! Eu me dou melhor com os
bichos do que com gente. Quando vejo o meu cavalo livre e solto no
prado – tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e
aveludado pescoço e contar-lhe a minha vida. E quando acaricio a
cabeça de meu cão – sei que ele não exige que eu faça sentido
ou me explique.
Talvez
a nordestina já tivesse chegado à conclusão de que a vida incomoda
bastante, alma que não cabe bem no corpo, mesmo alma rala como a
sua. Imaginavazinha, toda supersticiosa, que se por acaso viesse
alguma vez a sentir um gosto bem bom de viver – se desencantaria de
súbito de princesa que era e se transformaria em bicho rasteiro.
Porque, por pior que fosse sua situação, não queria ser privada de
si, ela queria ser ela mesma. Achava que cairia em grave castigo e
até risco de morrer se tivesse gosto. Então defendia-se da morte
por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para
esta não acabar. Essa economia lhe dava alguma segurança pois, quem
cai, do chão não passa. Teria ela a sensação de que vivia para
nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma
trágica pergunta: Quem sou eu? Assustou-se tanto que parou
completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que
vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás e
telefone.
Quanto
à ela, até mesmo de vez em quando ao receber o salário comprava
uma rosa.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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