segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Caim mata Abel

Ele voltou para contar uma outra estória bíblica. Veio caminhando absorto na leitura de um livro que trazia nas mãos. Ao ver-me fechou o livro, sorriu e disse:
Estou relendo o livro Demian, de Hermann Hesse. Ele foi a primeira pessoa a compreender a estória de Caim e Abel. Compreendeu porque não acreditou no que lhe haviam ensinado na igreja. Leu a estória pelo avesso. A estória diz que Caim era um homem que tinha no rosto uma marca que dava medo nos demais. Seu poder provocava inquietação. Por isso nem se atreviam a tocá-lo. Os filhos de Caim, marcados com o mesmo sinal, atemorizavam os demais. Daí que o sinal passou a ser explicado não como a distinção que realmente era, mas como uma coisa ruim, um sinal de maldição. Espalharam o boato de que os homens assim marcados eram malvados. A existência de uma raça especial de homens sem medo passou a incomodar. Os que têm medo não gostam dos que não têm medo. Aí inventaram uma lenda de horror, irmão matando irmão, para se vingarem daquela raça... Caim era um verdadeiro homem e lhe arranjaram essa história porque o temiam...”
Fiquei surpreso com essa versão que o Diabo me trazia da estória. Eu aprendera que Caim era mau e Abel era bom. Pois agora, com a nova explicação, eu também comecei a ver a estória pelo avesso.
Você está sugerindo que Caim não era mau e que toda a narração da Bíblia está errada?”, perguntei.
É isso mesmo. Basta ler a estória com atenção (Gênesis 4.1-16). O que ela diz é que Caim era lavrador, cultivava os campos, via a relva pela manhã coberta de orvalho, semeava o trigo e ficava feliz ao ver suas espigas douradas agitadas pelo vento. Cuidava das videiras, fazia vinho e espremia as azeitonas para fazer azeite. Ah! O azeite com que se lambuza o pão e se põe nas lâmpadas para alumiar! Lavrador, ele seguia uma mansa dieta vegetariana.
Já Abel, seu irmão, era pastor de ovelhas. Levava-as pelas pastagens para que ficassem gordas. Pra que ficarem gordas? Porque as amava? Não. Abel adorava carne de ovelha assada na brasa. Abel era carnívoro. Alimentava-se com a carne das mansas ovelhas, as mesmas ovelhas que ele levava para pastar. Foi por isso que Abel, para realizar seus impulsos gastronômicos, inventou o churrasco. Abel, o carnívoro, é o patrocinador de todos os churrascos.
O quintal da casa de Abel estava sempre cheio de cabeças de ovelhas, cobertas de moscas. De dia vinham os urubus; de noite, as hienas.
Os hábitos carnívoros de Abel preocupavam Caim, que gostava muito do irmão. Ele temia que Jeová se vingasse dele por causa dessa maldade para com animais tão mansos e indefesos.
“‘Abel, você não tem medo de Deus’, ele perguntava? ‘Você sabe que um profeta ainda não nascido irá escrever que Deus é o pastor que dá a sua vida pelas suas ovelhas. E você é um pastor que faz justo o contrário... Deus vai te castigar...’
Abel não dava bola. Mordia a perna assada da ovelha e ria do irmão. Até que ele se encheu com as advertências do irmão.
“‘Olha aqui, Caim, vamos resolver esse assunto de uma vez por todas. E a melhor forma de fazê-lo será convidar Jeová para um almoço. Ele será o juiz. Ele dirá qual dieta é do seu agrado. Você prepara um almoço vegetariano e eu preparo um churrasco de carne de ovelha...’
Assim ficou combinado. Acertaram a data e enviaram um convite ao Todo-Poderoso.
Caim caprichou no almoço. Saladas multicoloridas, pão quentinho, saído do forno, azeitonas, alcachofras, milho cozido, arroz, feijão, salada de tabule. A mesa estava uma beleza.
Abel matou uma ovelha — era triste ouvir os balidos de dor da ovelha enquanto Abel lhe enfiava a faca no coração —, cortou sua cabeça e a estripou. Acendeu a churrasqueira estilo gaúcho e colocou a ovelha sobre as brasas. A gordura pingava sobre as brasas. O cheiro era tentador.
No dia e hora marcados chegou Jeová para o almoço. Olhou de longe para a linda mesa que Caim lhe preparara. Mas as alfaces, os tomates, os pães e azeite não o comoveram. Suas glândulas salivares permaneceram indiferentes. Aí ele respirou fundo e a fumaça com o cheiro da gordura entrou pelo seu nariz. Ah! Como é suave o cheiro da gordura da ovelha churrasqueada. E a boca de Jeová se encheu d’água.
Assentaram-se então os dois, Jeová e Abel, banqueteando-se com as carnes da ovelhinha churrasqueada.
Caim, de longe, sozinho com sua refeição vegetariana, olhava com raiva. Era uma raiva profunda. Inveja de Abel, o cozinheiro preferido pelo Criador. E indignação com Jeová. Nunca lhe passara pela cabeça que Jeová pudesse ser carnívoro e que desprezasse os vegetarianos...
Passado o almoço, Jeová, com a barriga cheia, retornou aos céus. Abel pôs-se então a caçoar de Caim. A raiva foi crescendo no coração de Caim até que ele, movido por justa indignação vegetariana, tomou um cabo de enxada que estava encostado à porta de sua casa e, com uma paulada certeira, despachou o seu irmão para o outro mundo. ‘Ah!’, ele pensou. ‘Deste momento em diante as ovelhas não precisarão mais ter medo.’”
Nesse momento, o Diabo se calou. A estória havia chegado ao fim.
Acho que você nunca pensou nisso, que o primeiro assassinato tenha acontecido por uma questão de dieta...”
Mas não era uma questão de dieta apenas. Era uma luta entre dois deuses. O Deus de Abel, carnívoro, que só se satisfaz com sangue, e o Deus de Caim, vegetariano, que se satisfaz com alimentos mansos...
Ditas essas palavras ele se levantou e despediu-se.
Até um dia qualquer. Voltarei para contar outras estórias...”

* * * 
 
A estória de Caim e Abel, tal como está na Bíblia, foi escrita com um objetivo ideológico e pedagógico. Quem eram os pastores que comiam carne de ovelha? Quem eram os “Abéis”? Eram os israelitas, nômades, caminhantes no deserto, onde a agricultura era impossível. Gente do MST não tem tempo para desenvolver agricultura... E quem eram os agricultores, os “Cains”? Eram os habitantes das planícies da Mesopotâmia, uma civilização adiantada e estável em que a agricultura florescia. Os israelitas, os “abéis”, se preparavam para invadir as terras do agricultores, os “cains”... A estória define os agricultores como gente malvada que, podendo, mata os “abéis”. Assim, antes que os “cains” matem os “abéis”, os “abéis” carnívoros que tomem a justa iniciativa de matar os “cains” agricultores.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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