Ele
voltou para contar uma outra estória bíblica. Veio caminhando
absorto na leitura de um livro que trazia nas mãos. Ao ver-me fechou
o livro, sorriu e disse:
“Estou
relendo o livro Demian, de Hermann Hesse. Ele foi a primeira pessoa a
compreender a estória de Caim e Abel. Compreendeu porque não
acreditou no que lhe haviam ensinado na igreja. Leu a estória pelo
avesso. A estória diz que Caim era um homem que tinha no rosto uma
marca que dava medo nos demais. Seu poder provocava inquietação.
Por isso nem se atreviam a tocá-lo. Os filhos de Caim, marcados com
o mesmo sinal, atemorizavam os demais. Daí que o sinal passou a ser
explicado não como a distinção que realmente era, mas como uma
coisa ruim, um sinal de maldição. Espalharam o boato de que os
homens assim marcados eram malvados. A existência de uma raça
especial de homens sem medo passou a incomodar. Os que têm medo não
gostam dos que não têm medo. Aí inventaram uma lenda de horror,
irmão matando irmão, para se vingarem daquela raça... Caim era um
verdadeiro homem e lhe arranjaram essa história porque o temiam...”
Fiquei
surpreso com essa versão que o Diabo me trazia da estória. Eu
aprendera que Caim era mau e Abel era bom. Pois agora, com a nova
explicação, eu também comecei a ver a estória pelo avesso.
“Você
está sugerindo que Caim não era mau e que toda a narração da
Bíblia está errada?”, perguntei.
“É
isso mesmo. Basta ler a estória com atenção (Gênesis 4.1-16). O
que ela diz é que Caim era lavrador, cultivava os campos, via a
relva pela manhã coberta de orvalho, semeava o trigo e ficava feliz
ao ver suas espigas douradas agitadas pelo vento. Cuidava das
videiras, fazia vinho e espremia as azeitonas para fazer azeite. Ah!
O azeite com que se lambuza o pão e se põe nas lâmpadas para
alumiar! Lavrador, ele seguia uma mansa dieta vegetariana.
“Já
Abel, seu irmão, era pastor de ovelhas. Levava-as pelas pastagens
para que ficassem gordas. Pra que ficarem gordas? Porque as amava?
Não. Abel adorava carne de ovelha assada na brasa. Abel era
carnívoro. Alimentava-se com a carne das mansas ovelhas, as mesmas
ovelhas que ele levava para pastar. Foi por isso que Abel, para
realizar seus impulsos gastronômicos, inventou o churrasco. Abel, o
carnívoro, é o patrocinador de todos os churrascos.
“O
quintal da casa de Abel estava sempre cheio de cabeças de ovelhas,
cobertas de moscas. De dia vinham os urubus; de noite, as hienas.
“Os
hábitos carnívoros de Abel preocupavam Caim, que gostava muito do
irmão. Ele temia que Jeová se vingasse dele por causa dessa maldade
para com animais tão mansos e indefesos.
“‘Abel,
você não tem medo de Deus’, ele perguntava? ‘Você sabe que um
profeta ainda não nascido irá escrever que Deus é o pastor que dá
a sua vida pelas suas ovelhas. E você é um pastor que faz justo o
contrário... Deus vai te castigar...’
“Abel
não dava bola. Mordia a perna assada da ovelha e ria do irmão. Até
que ele se encheu com as advertências do irmão.
“‘Olha
aqui, Caim, vamos resolver esse assunto de uma vez por todas. E a
melhor forma de fazê-lo será convidar Jeová para um almoço. Ele
será o juiz. Ele dirá qual dieta é do seu agrado. Você prepara um
almoço vegetariano e eu preparo um churrasco de carne de ovelha...’
“Assim
ficou combinado. Acertaram a data e enviaram um convite ao
Todo-Poderoso.
“Caim
caprichou no almoço. Saladas multicoloridas, pão quentinho, saído
do forno, azeitonas, alcachofras, milho cozido, arroz, feijão,
salada de tabule. A mesa estava uma beleza.
“Abel
matou uma ovelha — era triste ouvir os balidos de dor da ovelha
enquanto Abel lhe enfiava a faca no coração —, cortou sua cabeça
e a estripou. Acendeu a churrasqueira estilo gaúcho e colocou a
ovelha sobre as brasas. A gordura pingava sobre as brasas. O cheiro
era tentador.
“No
dia e hora marcados chegou Jeová para o almoço. Olhou de longe para
a linda mesa que Caim lhe preparara. Mas as alfaces, os tomates, os
pães e azeite não o comoveram. Suas glândulas salivares
permaneceram indiferentes. Aí ele respirou fundo e a fumaça com o
cheiro da gordura entrou pelo seu nariz. Ah! Como é suave o cheiro
da gordura da ovelha churrasqueada. E a boca de Jeová se encheu
d’água.
“Assentaram-se
então os dois, Jeová e Abel, banqueteando-se com as carnes da
ovelhinha churrasqueada.
“Caim,
de longe, sozinho com sua refeição vegetariana, olhava com raiva.
Era uma raiva profunda. Inveja de Abel, o cozinheiro preferido pelo
Criador. E indignação com Jeová. Nunca lhe passara pela cabeça
que Jeová pudesse ser carnívoro e que desprezasse os
vegetarianos...
“Passado
o almoço, Jeová, com a barriga cheia, retornou aos céus. Abel
pôs-se então a caçoar de Caim. A raiva foi crescendo no coração
de Caim até que ele, movido por justa indignação vegetariana,
tomou um cabo de enxada que estava encostado à porta de sua casa e,
com uma paulada certeira, despachou o seu irmão para o outro mundo.
‘Ah!’, ele pensou. ‘Deste momento em diante as ovelhas não
precisarão mais ter medo.’”
Nesse
momento, o Diabo se calou. A estória havia chegado ao fim.
“Acho
que você nunca pensou nisso, que o primeiro assassinato tenha
acontecido por uma questão de dieta...”
Mas
não era uma questão de dieta apenas. Era uma luta entre dois
deuses. O Deus de Abel, carnívoro, que só se satisfaz com sangue, e
o Deus de Caim, vegetariano, que se satisfaz com alimentos mansos...
Ditas
essas palavras ele se levantou e despediu-se.
“Até
um dia qualquer. Voltarei para contar outras estórias...”
*
* *
A
estória de Caim e Abel, tal como está na Bíblia, foi escrita com
um objetivo ideológico e pedagógico. Quem eram os pastores que
comiam carne de ovelha? Quem eram os “Abéis”? Eram os
israelitas, nômades, caminhantes no deserto, onde a agricultura era
impossível. Gente do MST não tem tempo para desenvolver
agricultura... E quem eram os agricultores, os “Cains”? Eram os
habitantes das planícies da Mesopotâmia, uma civilização
adiantada e estável em que a agricultura florescia. Os israelitas,
os “abéis”, se preparavam para invadir as terras do
agricultores, os “cains”... A estória define os agricultores
como gente malvada que, podendo, mata os “abéis”. Assim, antes
que os “cains” matem os “abéis”, os “abéis” carnívoros
que tomem a justa iniciativa de matar os “cains” agricultores.
Rubem
Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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