O
pintor Francisco de Goya (1819-1823) pintou um quadro sinistro que
representa o deus Cronos devorando um dos seus filhos. A brutalidade
plástica e a verdade da tela estão em que ela nos confronta com o
nosso destino: à medida que o tempo passa, a vida se vai.
O
tempo faz o vivido desaparecer no esquecimento. Ricardo Reis,
heterônimo de Fernando Pessoa, descreveu essa tristeza de sentir a
vida escorrendo para o passado num poema: “O tempo passa. Não nos
diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase maliciosos, sentir-nos ir.
Não vale a pena fazer um gesto. Não se resiste ao deus atroz que os
próprios filhos devora sempre”.
Por
isso eu escrevo, para lutar contra o tempo. A escritura e a leitura
fazem os mortos ressuscitar. A escritura e a leitura fazem o passado
acontecer de novo. Por isso, ao ler o que aconteceu e não mais
existe, nós rimos e choramos como se aquilo que aconteceu estivesse
acontecendo de novo. E foi isso que aconteceu comigo. Envelhecendo,
tive medo que o meu passado se perdesse.
Resolvi,
então, escrever o meu passado, um passado feliz que o tempo me havia
roubado, para oferecê-lo às minhas netas. Queria que, quando eu
morresse, ele continuasse vivo na memória delas. Escrevi um livro
contando a vida que vivi quando menino, na roça. Descrevi a casa
velha, pintada de branco. Contei sobre os riachos e as árvores,
sobre as noites silenciosas, sobre os ruídos dos bichos na mata,
sobre os céus escuros iluminados por milhares de estrelas, sobre o
fogão de lenha e sobre a luz das lamparinas iluminando a sala. E
sobre algo impensável para elas: não havia eletricidade. Não havia
geladeira. As comidas eram guardadas em armários de tela chamados
guarda-comida.
Publicado
o livro, elas não demonstraram o menor interesse naquilo que eu
contava porque o mundo em que eu vivera e amara lhes era estranho.
Quem se interessou foram os velhos porque aquele era um mundo que
fora deles.
Passado
algum tempo, recebi um e-mail em inglês, uma mulher... Desculpava-se
pelo inglês. Era uma imigrante egípcia. Entendia bem o português,
lia os meus livros e gostava deles. Escrevia-me para me dizer que, no
meu livro para as minhas netas, eu usara uma palavra que a
apunhalara...
Uma
única palavra com o poder de apunhalar! Que palavra poderosa poderia
ter sido essa?
“Fui
apunhalada pelo ‘guarda-comida’”, ela disse. “Eu havia me
esquecido de que essa palavra existia. O tempo a mergulhara no
esquecimento. Mas quando a li o meu passado voltou, instantaneamente.
Instantaneamente eu me vi menina de seis anos na cozinha da minha
casa no Cairo, sessenta anos antes. Lá havia um ‘guarda-comida’.”
E ela disse o nome em francês: “garde-manger”. “A palavra
anulou o espaço: atravessei o Atlântico... A palavra anulou o
tempo: o passado ficou presente, ressuscitou do esquecimento...”
Aprendi
então que máquinas do tempo existem. Elas se chamam “palavras”.
Podemos,
então, pintar uma tela que é o inverso da tela que Goya pintou: a
vida devorando o tempo…
Rubem
Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é
preciso fogo
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